78 - Como foi compilado o Novo Testamento, o texto mais influente do mundo?

78 - Como foi compilado o Novo Testamento, o texto mais influente do mundo?

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O Novo Testamento é essencial para a vida de qualquer cristão, e também influi fortemente na vida de todos os ocidentais, mesmo os não-cristãos e ateus. Então, é muito interessante que saibamos como foram selecionados os textos que eram dignos de compor esse cânon, e quais critérios foram utilizados pela Igreja para isso.

Já explicamos antes a diferença entre os textos canônicos e os apócrifos (confira aqui). Os apócrifos ficaram fora do cânon do Novo Testamento por diversos motivos, nenhum deles político, como muitas vezes nos é sugerido pela mídia pela e indústria do entretenimento. E, sempre é bom lembrar, o Imperador Constantino jamais meteu o bedelho nesse assunto (saiba mais aqui).

Os escritos de alguns autores da Igreja primitiva – Papias de Hierápolis, Justino Mártir e Irineu de Lyon – nos permitem assegurar que os Quatro Evangelhos já eram lidos na Liturgia cristã nessa época, e que os cristãos já atribuíam a esses textos um caráter sagrado.

Irineu, bispo de Lyon, nos fala do “Evangelho Quadriforme” (Contra as Heresias III, 11,8). Ele usa essa expressão para designar os Quatro Evangelhos canônicos que conhecemos hoje (Marcos, Mateus, Lucas e João), alertando os cristãos para a existência de outros evangelhos que já começavam a circular na sua época, mas que não eram dignos de confiança – ou seja, nessa época, já haviam surgido alguns apócrifos.

Vamos agora buscar informações junto à obra do célebre historiador, Daniel-Rops. Ele explica como a Igreja fixou a escolha de quais livros eram inspirados (canônicos) e quais livros não eram inspirados (apócrifos):

“A escolha não foi feita de forma rígida, a priori,ex cathedra: a decisão nasceu da própria vida, com serena naturalidade. Houve certamente hesitações, reflexões e talvez discussões. (…)

“O certo é que a Igreja se mostrou extremamente rigorosa nos métodos que presidiram à sua escolha. Tertuliano conta, por volta do ano 200, que uns trinta anos antes aparecera na província da Ásia um livro dos Atos de Paulo, em que se via o Apóstolo converter uma jovem pagã chamada Tecla e esta pôr-se logo a pregar admiravelmente o Evangelho. Como o relato parecesse suspeito, procuraram o seu autor, um sacerdote mais cheio de boas intenções do que de prudência, e imediatamente o degradaram.”

- Daniel-Rops, “A Igreja dos Apóstolos e Mártires”. Ed. Quadrante

Portanto, fica claro que os bispos da Igreja eram muito criteriosos, e não saíam gritando “Ô grôria!” pra qualquer livro que contasse uma história maravilhosa sobre os Apóstolos . O principal critério de canonicidade é a inspiração; para que um texto faça parte do Cânon, é necessário que ele seja inspirado.

um texto só era admitido como “inspirado” quando todas as comunidades da igreja, em toda a parte, o reconheciam como fiel à verdadeira tradição e à Boa Nova. 

Na medida em que as décadas passavam, os Quatro Evangelhos se difundiam e eram cada vez mais lidos e consumidos pela cristandade, sendo usados na Liturgia. E o mesmo foi acontecendo com os demais textos do Novo Testamento (somente o caso do Apocalipse é peculiar, pois esse texto demorou para ser aceito no Oriente, mas isso é assunto para outro post).

Alguns apócrifos – como o venerável texto do Pastor de Hermas – também foram lidos, difundidos e usados em liturgias específicas, mas nunca de maneira universal. Esse é um dos critérios de estabelecimento do Cânon, portanto: a universalidade (catolicidade) da aceitação por parte dos cristãos da Antiguidade. Nenhum apócrifo chegou a gozar de uma autoridade e aceitação universal como o Evangelho de Mateus, por exemplo.

Nesse processo de estabelecimento do cânon, foram fundamentais as testemunhas vivas, pessoas que foram discípulas dos apóstolos e, assim, podiam atestar que aquelas palavras provinham mesmo de Jesus, e que os textos foram compostos pelos Apóstolos e pelos discípulos diretos dos Apóstolos.

Os bispos que haviam sido discípulos diretos dos Apóstolos – ou discípulos daqueles que haviam sido evangelizados pelos Apóstolos – carregavam o Evangelho com todo o seu frescor. Eles podiam identificar um texto sagrado de olhos fechados, tipo aquele garotinho do comercial antigo do Presunto Sadia…

Esse fato histórico é um golpe mortal na doutrina protestante da Sola Scriptura (somente as Escrituras como autoridade de fé): a Tradição oral, comunicada pelo testemunho das autoridades da Igreja, precedeu a Bíblia. A Igreja, portanto, gerou Bíblia, e não o contrário. Afinal, quando Jesus subiu aos Céus, Ele não deixou Bíblia alguma; deixou, isso sim, a Sua Igreja, com uma liderança visível e incontestável: os Seus Apóstolos.

Os Quatro Evangelhos, como sabemos, contém aparentes divergências sobre pormenores. Teria sido fácil para os Padres Primitivos harmonizá-los em um texto único, e de fato, Taciano, discípulo de São Justino, compôs um Evangelho único, fazendo uma síntese dos quatro: o Diatessaron.

Apesar de ter grande apreço pelo Diatessaron, a Igreja nunca o adotou de forma universal, preferindo compor o Novo Testamento com os Quatro Evangelhos um após o outro, com suas individualidades e diferenças. Rops tem razão ao dizer que essa atitude “é uma das mais belas provas da verdade dos vinte e sete textos”, os 27 livros do Novo Testamento.

No fim do século II, a escolha dos textos inspirados estava feita, de modo definitivo. A prova está no Cânon de Muratori, escrito por volta do ano 200, em Roma. Esse documento, que contém o índice das matérias da Sagrada Escritura, mostra que, naquela época, a Igreja Católica possuía o mesmo cânon de hoje (com exceção das Epístolas de São Tiago e de São Pedro, que foram aceitas no cânon um pouco depois).

No séc. IV, ao menos um documento eclesiástico define o Cânon de maneira institucional e oficial. Vejam bem, estamos falando de maneira oficial e institucional, porque, na prática, para a grande maioria dos cristãos, o Cânon já era conhecido.

Um desses documentos é a Carta Festiva de 367 de Atanásio. Nessa carta, o Bispo de Alexandria fornece uma lista dos livros canônicos. No tocante ao Novo Testamento, essa lista tem exatamente os mesmos textos do Novo Testamento hoje.

Ainda no séc. IV, o Papa Dâmaso ordenou que São Jerônimo normatizasse a tradução Latina da Bíblia. Essa versão ficou conhecida como “Vulgata”, e tornou-se, de certa maneira, uma versão oficial da Igreja Latina, com os mesmos textos do Novo Testamento que até hoje são considerados canônicos pelos católicos.

Os textos do Novo Testamento compilados pela Igreja Católica são exatamente os mesmos presentes na bíblia mutilada dos protestantes. A diferença da bíblia protestante para a católica está no Antigo Testamento, do qual eles arrancaram sete livros (saiba mais aqui).

A formação do Cânon envolve não somente o Novo Testamento, mas também o Antigo. Portanto, seria impossível tratar de todas essas questões de maneira satisfatória em único post. Para quem quiser saber mais sobre o assunto, sugerimos a leitura do livro do Julio Trebolle Barrera, A Bíblia Judaica e a Bíblia Cristã: uma Introdução à História da Bíblia.