79 - Apócrifos – Por falta de inspiração, eles não entraram pelo Cânon
“Quase” é o título de um texto que já foi visto por milhões de pessoas na internet, creditado ao cronista Fernando Veríssimo. O texto ficou tão popular que chegou a ser traduzido e publicado na França, numa coletânea de escritores brasileiros. O “detalhe” é que ele não foi produzido por Veríssimo (óbvio, do contrário, não seria tão bom!), e sim por uma estudante de medicina de Florianópolis. Esse tipo de confusão acontece diversos outros autores, como o professor Pasquale Cipro Neto, que diz que vive recebendo elogios por textos que nunca escreveu.
Mais famoso ainda no meio católico é o texto “Santos de calça jeans”, que muita gente até hoje jura que é de São João Paulo II. Entretanto, o papa polonês jamais disse aquelas palavras (ouço o som de coraçõezinhos partindo…)!
Esse fenômeno tem tudo a ver com o tema desse post: apócrifos. Se em pleno século XXI, com tantos recursos de informação, é possível que textos falsamente atribuídos a alguma pessoa de renome sejam amplamente divulgados e tidos por muitos como legítimos, imaginem como era fácil forjar a autoria de textos na Antiguidade!
Uma multidão de joselitos, sempre sedenta por alguma novidade que desmoralize a Igreja e a fé católica, adora dar crédito a apócrifos, como se fossem documentos da mais alta credibilidade. É esse tipo de gente que enche os bolsos de picaretas como o escritor do livro sobre o “Evangelho Perdido”, que diz que Jesus casou com Madalena (saiba mais aqui).
Para explicar melhor esse assunto, convidamos o historiador Julio Cesar Chaves.
O QUE É UM APÓCRIFO?
Por: Julio Cesar Chaves
O assunto deste post talvez seja um daqueles que mais desperta o interesse do grande público: os famigerados apócrifos e porque eles não fazem parte do Cânon. Neste post falaremos de maneira específica dos chamados Apócrifos do Novo Testamento.
Dicionário de Catoliquês: Cânon
Lista dos livros inspirados da Sagrada Escritura. Do Grego KANON, “vara reta, padrão de excelência”. Ou seja, os textos canônicos são a regra, a medida e o modelo para os cristãos.
O primeiro passo é definir o que é um apócrifo. A palavra “apócrifo” significa, via de regra, “livro secreto”. Mas aquilo que chamamos de apócrifo é muito mais que isso.
A definição é grande e complexa. Não temos espaço aqui para comentar de maneira detalhada todos os pormenores. Vamos nos ater àquilo que diz respeito diretamente à formação do Cânon. De forma simplificada, podemos dizer que um apócrifo do Novo Testamento tem é um texto com as seguintes características:
- foi composto na Antiguidade ou Antiguidade Tardia;
- possui conteúdo religioso e/ou teológico, que imita ou faz referência a um dos gêneros literários do Novo Testamento (Evangelhos, Epístolas, Atos e Apocalipses);
- sua autoria é falsamente atribuída (pseudonímia) a uma figura de destaque do judaísmo ou cristianismo primitivo, geralmente um apóstolo.
Os assuntos teológicos e religiosos tratados pelos apócrifos são os mais variados possíveis; não existe, nem de longe, qualquer tipo de unidade teológica ou doutrinal entre os diversos apócrifos hoje conhecidos; muitos deles professam doutrinas heréticas, mas nem todos. Eles foram elaborados em contextos, línguas, épocas e locais diversos.
Como já dissemos, os apócrifos fazem referência ou imitam um dos gêneros literários do Novo Testamento. Se isso acontece, é porque necessariamente os apócrifos não são da mesma época do Novo Testamento, não foram compostos no séc. I, nos anos ou nas décadas posteriores à morte de Jesus e à expansão inicial do cristianismo. De maneira geral, os apócrifos são obras que começam a ser compostas a partir da segunda metade do séc. II (mas muito foram compostos bem depois disso).
Existe, portanto, um intervalo de pelo menos 50 anos entre a composição do texto neotestamentário mais recente (o Evangelho de João, composto na virada do séc. I para o II) e os primeiros apócrifos.
Essa questão cronológica nos leva a tratar de outro ponto da nossa definição, chamada pseudonímia. Chama-se assim o ato de se atribuir falsamente a autoria de um texto a uma figura conhecida, que goze de autoridade frente a um determinado grupo – no
Alguns apócrifos são completamente heréticos e descabidos, outros misturam verdades e delírios. Por outro lado, alguns até trazem conteúdos muito edificantes, apesar de trazerem elementos da imaginação popular (e, por isso mesmo, a Igreja os olhou com prudência e desconfiança). O Proto-Evangelho de Tiago, por exemplo, é considerado um livro venerável, tendo sido citado por vários Pais da Igreja, como Orígenes e São Justino; é bastante provável, portanto, que esse apócrifo se comunique conteúdos autênticos da Tradição, apesar de não ser um livro inspirado.
Dicionário de Catoliquês: inspirado
O Papa Leão XIII nos explica, em sua encíclica Providentíssimus Deus:
“A inspiração é um impulso sobrenatural pelo qual o Espírito Santo excitou e conduziu os escritores sagrados, e lhes prestou a sua assistência enquanto escreviam, de modo que eles recordassem exatamente, quisessem reproduzir com fidelidade e exprimissem com infalível verdade tudo o que Deus lhes ordenava e só o que lhes ordenava que escrevessem.”
Para quem quiser saber mais sobre o assunto, eu sugiro a leitura do livro do Julio Trebolle Barrera, A Bíblia Judaica e a Bíblia Cristã: uma Introdução à História da Bíblia.
Agora que já esclarecemos o que é um livro apócrifo e o que é um livro canônico, falta ainda abordarmos o processo de formação do Cânon. Como a Igreja identificou os textos que deveriam fazer parte da Bíblia? Confira no próximo post!
Julio Cesar Chaves é historiador especializado em cristianismo antigo e doutorando em Ciências das Religiões pela Université de Laval. Ele escreve no blog Apocrypha Gnostica. Para visualizar seu Currículo Lattes, clique aqui.