3. São Gregório Magno e a reconquista da Europa

3. São Gregório Magno e a reconquista da Europa

Pelas mãos de Gregório Magno passaram a formação do clero, a reforma da liturgia, a salvação da Itália e a evangelização da Inglaterra. Conheça mais sobre a vida deste grande pontífice e pastor de almas.

 

No ano de 540, na cidade de Roma, nasce um dos Papas mais influentes de toda a Idade Média: São Gregório Magno. Sua natividade acontece durante um curto período de paz após a Guerra Gótica, que marcou a empresa do Império Bizantino para recuperar a Itália, então sob o domínio dos ostrogodos. O sucesso da campanha é devido ao famoso general Belisário, que, após submeter os vândalos no norte da África, sobe para a Península Itálica e a liberta da mão dos bárbaros.
 
Neste ambiente, o jovem Gregório, filho de um senador romano, segue desde cedo os passos de seu pai e se aventura na carreira política, alcançando, com 30 anos, um cargo muito importante na Cidade Eterna. Seu coração, no entanto, pede uma entrega total a Deus. Homem de grande espiritualidade, “na sua família não faltavam exemplos de piedade cristã; sem falar do papa de quem descendia, basta dizer que a sua mãe Sílvia e as suas duas tias, as monjas Tarsila e Emiliana, eram santas que a Igreja canonizara” [1].
 
Gregório, então, renuncia à sua vida pública e à herança que ganhara dos pais para fazer-se monge, fundando uma fraternidade monástica no monte Célio, uma das sete colinas de Roma.
 
Seu recolhimento, todavia, é interrompido quando o Papa Pelágio II o chama para ser seu apocrisiário – hoje, a mesma função de um núncio – em Constantinopla, a fim de interceder junto ao Imperador pela Itália, ameaçada pelos longobardos [2] e por uma devastadora epidemia de peste bubônica. Durante sua estadia na capital do Império, Gregório escreve seu famoso comentário moral ao livro de Jó – Moralia in Job –, uma grande obra de espiritualidade.
 
De volta à Itália, Gregório permanece pouco tempo em seu monastério. Com a morte de Pelágio II, vitimado pela peste, o povo e o clero romanos aclamam-no Papa. A princípio, Gregório resiste, mas acaba aceitando o pontificado.
 
Ao assumir o trono de Pedro, a primeira coisa que faz é ensinar aos bispos como serem pastores. Em sua Regula Pastoralis, o Papa Gregório traça as linhas da vida sacerdotal, lembrando que quem quer cuidar das almas deve, em primeiro lugar, vigiar a própria alma. É de tal importância este escrito que, até pouco tempo, era obrigatório que todo o episcopado o tivesse em mãos, a fim de aprendê-lo.
 
Depois, o Papa Gregório tem que enfrentar o drama da peste bubônica, que aflige o seu rebanho. Convicto de que a doença é um castigo de Deus e que só a Sua misericórdia pode solucionar o problema, o Santo Padre recorre às armas espirituais para vencê-la. Com o ícone de Nossa Senhora, sob o título de Salus Populi Romani, ele faz inúmeras procissões pela cidade de Roma, invocando ao Senhor a cura de seu povo.
 
Um dia, sobre o mausoléu de Adriano, o Papa vê os anjos cantando: Regina caeli laetare, alleluia; quia quem meruísti portare, alleluia; resurrexit sicut dixit, alleluia, ao que ele responde, extático: Ora pro nobis Deum, alleluia. Neste momento, diante dele, o anjo da morte que pesava a mão sobre a Cidade Eterna põe sua espada na bainha e, milagrosamente, o flagelo da peste é afastado [3]. Esse episódio mostra como o “cônsul de Deus”, como consta em seu epitáfio, também era um homem de profunda espiritualidade.
 
É grande a influência de Gregório Magno na liturgia romana da Missa, a qual ele enriqueceu com orações escritas de próprio punho e com piedosos costumes, mantidos até hoje, como o de rezar o Pai-Nosso logo depois da Oração Eucarística ou o de alternar várias orações e prefácios para os diferentes tempos do ano litúrgico. Foi com ele que começou a tradição das chamadas “missas gregorianas”, para libertar as almas do purgatório [4]. Destaque-se também a sua importância para a música sacra, com o canto gregoriano.
 
No exercício diplomático, o Papa Gregório, como sábio pastor, procurou entabular um relacionamento com a rainha dos longobardos, Teodolinda, visando pacificar a situação e, ao mesmo tempo, converter os bárbaros.
 
Outra nação também se beneficiaria com seu impulso evangelizador, como conta a história:
 
“Quando era ainda monge no Célio, Gregório atravessara certo dia um dos mercados de Roma, onde os traficantes expunham escravos à venda. Entre a mercadoria humana, na sua maior parte de origem oriental, morena e de baixa estatura, chamaram-lhe a atenção três jovens de bom aspecto, brancos e louros, com os olhos azuis e tez rosada, como a raça inglesa os produz aos vinte anos. 'Donde vêm estes homens?, perguntou o monge ao negociante. - Da Bretanha. - Cristãos ou pagãos? - Pagãos. - Que pena é que figuras tão cheias de luz estejam em poder do príncipe das trevas! E de que raça são? - Anglos – Anglos? Anjos (Angli? Angeli), deveríamos dizer, e herdeiros do Céu como os Anjos! - E de onde vêm? - De Deira. - Pois bem, da ira (de ira) serão mandados para a misericórdia de Cristo. E quem é o seu rei? - Aella. - Cada vez melhor; cantarão, pois, Aleluia...' Verdadeiro ou falso, o episódio referido até nos seus trocadilhos proféticos pelo biógrafo do santo, João Diácono, anunciava uma grande intenção. Tendo acolhido os três anglos entre os monges do Célio, Gregório decidiu que os irmãos dos seus protegidos deveriam ser chamados a ter assento entre os anjos. E, mal eleito Papa, consagrou-se a essa tarefa.” [5]
De fato, ainda durante o seu pontificado, São Gregório instruiu e enviou, para evangelizar o território da atual Inglaterra, Agostinho de Cantuária, o qual obteve grande sucesso em seus esforços e, hoje, é venerado como santo e invocado como “apóstolo dos ingleses”.
 
Referências
 
  1. Henri Daniel-Rops, A Igreja dos tempos bárbaros, Quadrante: São Paulo, 1991, p. 232
  2. Para ilustrar a barbárie deste povo, é útil mencionar a história de um rei lombardo, Albuíno, que, tendo matado o rei dos gépidas, Cunimundo, degolou sua cabeça e pediu que se fizesse um cálice com o escalpo de seu crânio, para que ele bebesse vinho. Não contente, Albuíno desposou a filha de Cunimundo, Rosamunda, e quis fazer que também ela bebesse no copo feito do crânio de seu pai. Para vingar-se, Rosamunda assassinou Albuíno e fugiu com um amante, com o qual viveu outra tragédia, algum tempo depois. Esta e outras histórias estão contidas na Historia Langobardorum, de Paulo, o Diácono.
  3. De fato, ainda hoje, no mesmo mausoléu de Adriano - chamado também de Castelo de Santo Ângelo -, há uma estátua com São Miguel Arcanjo embainhando sua espada.
  4. Cf. RC. 136: É verdade que as missas gregorianas libertam as almas do purgatório?
  5. Henri Daniel-Rops, A Igreja dos tempos bárbaros, Quadrante: São Paulo, 1991, p. 237