13. Os Sentidos da Sagrada Escritura

13. Os Sentidos da Sagrada Escritura
A exegese histórico-crítica foi de grande utilidade para o estudo das Sagradas Escrituras, contudo, a Igreja adverte: apesar de bom, esse método não pode ser o único, é preciso avançar e perceber também o sentido espiritual das Sagradas Escrituras. Para tanto, o Catecismo da Igreja Católica compila os cinco princípios básicos para a leitura viva da Bíblia, princípios estes consagrados pelos dois mil anos de história.
 
 
Os Sentidos da Sagrada Escritura
 
A exegese histórico-crítica foi de grande utilidade para o estudo das Sagradas Escrituras, contudo, a Igreja adverte, apesar de bom, esse método não pode ser o único, é preciso avançar e perceber também o sentido espiritual das Sagradas Escrituras. Para tanto, o Catecismo da Igreja Católica compila os cinco princípios básicos para a leitura viva da Bíblia, princípios estes consagrados pelos dois mil anos de história da Igreja. Antes, porém, de tentar interpretar os sentidos das Sagradas Letras é preciso estar na Igreja. É o que diz o Papa Bento XVI na exortação apostólica Verbum Domini. Eis:
 
A Igreja, lugar originário da hermenêutica da Bíblia
 
29. Outro grande tema surgido durante o Sínodo, sobre o qual quero debruçar-me agora, é a interpretação da Sagrada Escritura na Igreja. E precisamente a ligação intrínseca entre Palavra e fé põe em evidência que a autêntica hermenêutica da Bíblia só pode ser feita na fé eclesial, que tem o seu paradigma no sim de Maria. A este respeito, São Boaventura afirma que, sem a fé, não há chave de acesso ao texto sagrado: «Esta é o conhecimento de Jesus Cristo, do qual têm origem, como de uma fonte, a segurança e a inteligência de toda a Sagrada Escritura. Por isso é impossível que alguém possa entrar para a conhecer, se antes não tiver a fé infusa de Cristo que é lanterna, porta e também fundamento de toda a Escritura». E São Tomás de Aquino, mencionando Santo Agostinho, insiste vigorosamente: «A letra do Evangelho também mata, se faltar a graça interior da fé que cura».
 
Isto permite-nos assinalar um critério fundamental da hermenêutica bíblica: o lugar originário da interpretação da Escritura é a vida da Igreja. Esta afirmação não indica a referência eclesial como um critério extrínseco ao qual se devem submeter os exegetas, mas é uma exigência da própria realidade das Escrituras e do modo como se formaram ao longo do tempo. De fato, «as tradições de fé formavam o ambiente vital onde se inseriu a atividade literária dos autores da Sagrada Escritura. Esta inserção englobava também a participação na vida litúrgica e na atividade externa das comunidades, no seu mundo espiritual, na sua cultura e nas vicissitudes do seu destino histórico.
 
Por isso, de modo semelhante, a interpretação da Sagrada Escritura exige a participação dos exegetas em toda a vida e em toda a fé da comunidade crente do seu tempo». Por conseguinte, «devendo a Sagrada Escritura ser lida e interpretada com o mesmo Espírito com que foi escrita», é preciso que os exegetas, os teólogos e todo o Povo de Deus se abeirem dela por aquilo que realmente é: como Palavra de Deus que Se nos comunica através de palavras humanas (cf. 1 Ts 2, 13). Trata-se de um dado constante e implícito na própria Bíblia: «Nenhuma profecia da Escritura é de interpretação particular, porque jamais uma profecia foi proferida pela vontade dos homens. Inspirados pelo Espírito Santo é que os homens santos falaram em nome de Deus» (2 Pd 1, 20-21).
 
Aliás, é precisamente a fé da Igreja que reconhece na Bíblia a Palavra de Deus; como admiravelmente diz Santo Agostinho, «não acreditaria no Evangelho se não me movesse a isso a autoridade da Igreja Católica». O Espírito Santo, que anima a vida da Igreja, é que torna capaz de interpretar autenticamente as Escrituras. A Bíblia é o livro da Igreja e, a partir da imanência dela na vida eclesial, brota também a sua verdadeira hermenêutica.
 
30. São Jerônimo recorda que, sozinhos, nunca poderemos ler a Escritura. Encontramos demasiadas portas fechadas e caímos facilmente em erro. A Bíblia foi escrita pelo Povo de Deus e para o Povo de Deus, sob a inspiração do Espírito Santo. Somente com o «nós», isto é, nesta comunhão com o Povo de Deus, podemos realmente entrar no núcleo da verdade que o próprio Deus nos quer dizer. Aquele grande estudioso, para quem «a ignorância das Escrituras é ignorância de Cristo», afirma que o caráter eclesial da interpretação bíblica não é uma exigência imposta do exterior; o Livro é precisamente a voz do Povo de Deus peregrino, e só na fé deste Povo é que estamos, por assim dizer, na tonalidade justa para compreender a Sagrada Escritura. Uma autêntica interpretação da Bíblia deve estar sempre em harmônica concordância com a fé da Igreja Católica. Jerônimo escrevia assim a um sacerdote: «Permanece firmemente apegado à doutrina tradicional que te foi ensinada, para que possas exortar segundo a sã doutrina e rebater aqueles que a contradizem».
 
Abordagens do texto sagrado que prescindam da fé podem sugerir elementos interessantes ao deterem-se sobre a estrutura do texto e as suas formas; inevitavelmente, porém, tal tentativa seria apenas preliminar e estruturalmente incompleta. De fato, como foi afirmado pela Pontifícia Comissão Bíblica, repercutindo um princípio compartilhado na hermenêutica moderna, «o justo conhecimento do texto bíblico só é acessível a quem tem uma afinidade vital com aquilo de que fala o texto». Tudo isto põe em relevo a relação entre a vida espiritual e a hermenêutica da Escritura. De fato, «com o crescimento da vida no Espírito, cresce também no leitor a compreensão das realidades de que fala o texto bíblico». Uma intensa e verdadeira experiência eclesial não pode deixar de incrementar a inteligência da fé autêntica a respeito da Palavra de Deus; e, vice-versa, a leitura na fé das Escrituras faz crescer a própria vida eclesial. Daqui podemos compreender de um modo novo a conhecida afirmação de São Gregório Magno: «As palavras divinas crescem juntamente com quem as lê». Assim, a escuta da Palavra de Deus introduz e incrementa a comunhão eclesial com todos os que caminham na fé.(VD 29,30)
A Bíblia é a alma da Sagrada Teologia, não há como fazer Teologia sem ela. O Papa Bento XVI confirma essa afirmação e recorda que nos tempos recentes o Magistério da Igreja vem orientando especificamente nesse sentido. A Verbum Domini continua:
 
32. Em primeiro lugar, é preciso reconhecer os benefícios que a exegese histórico-crítica e os outros métodos de análise do texto, desenvolvidos em tempos mais recentes, trouxeram para a vida da Igreja. Segundo a visão católica da Sagrada Escritura, a atenção a estes métodos é imprescindível e está ligada ao realismo da encarnação: «Esta necessidade é a consequência do princípio cristão formulado no Evangelho de João 1, 14: Verbum caro factum est. O fato histórico é uma dimensão constitutiva da fé cristã. A história da salvação não é uma mitologia, mas uma verdadeira história e, por isso, deve-se estudar com os métodos de uma investigação histórica séria». Por isso, o estudo da Bíblia exige o conhecimento e o uso apropriado destes métodos de pesquisa.
 
Se é verdade que esta sensibilidade no âmbito dos estudos se desenvolveu mais intensamente na época moderna, embora não de igual modo por toda a parte, todavia na sã tradição eclesial sempre houve amor pelo estudo da «letra». Basta recordar aqui a cultura monástica, à qual em última análise devemos o fundamento da cultura europeia: na sua raiz, está o interesse pela palavra. O desejo de Deus inclui o amor pela palavra em todas as suas dimensões: «Visto que, na Palavra bíblica, Deus caminha para nós e nós para Ele, é preciso aprender a penetrar no segredo da língua, compreendê--la na sua estrutura e no seu modo de se exprimir. Assim, devido precisamente à procura de Deus, tornam-se importantes as ciências profanas que nos indicam as vias rumo à língua».
 
33. O Magistério vivo da Igreja, ao qual compete «o encargo de interpretar autenticamente a Palavra de Deus escrita ou contida na Tradição», interveio com sapiente equilíbrio relativamente à justa posição a tomar face à introdução dos novos métodos de análise histórica. Refiro-me, de modo particular, às encíclicas Providentissimus Deus do Papa Leão XIII e Divino afflante Spiritu do Papa Pio XII. O meu venerável predecessor João Paulo II recordou a importância destes documentos para a exegese e a teologia, por ocasião da celebração do centenário e cinquentenário respectivamente da sua publicação. A intervenção do Papa Leão XIII teve o mérito de proteger a interpretação católica da Bíblia dos ataques do racionalismo, sem contudo se refugiar num sentido espiritual separado da história. Não desprezava a crítica científica; desconfiava-se somente «das opiniões preconcebidas que pretendem fundar-se sobre a ciência mas, na realidade, fazem astuciosamente sair a ciência do seu campo».
 
Por sua vez, o Papa Pio XII encontrava-se perante os ataques dos adeptos duma exegese chamada mística, que recusava qualquer abordagem científica. Com grande sensibilidade, a Encíclica Divino afflante Spiritu evitou que se desenvolvesse a ideia de uma dicotomia entre a «exegese científica» para o uso apologético e a «interpretação espiritual reservada ao uso interno», afirmando, pelo contrário, quer o «alcance teológico do sentido literal metodicamente definido», quer a pertença da «determinação do sentido espiritual (…) ao campo da ciência exegética». De tal modo ambos os documentos recusam «a ruptura entre o humano e o divino, entre a pesquisa científica e a visão da fé, entre o sentido literal e o sentido espiritual». Este equilíbrio foi, sucessivamente, expresso no documento de 1993 da Pontifícia Comissão Bíblica: «No seu trabalho de interpretação, os exegetas católicos jamais devem esquecer que interpretam a Palavra de Deus. A sua tarefa não termina depois que distinguiram as fontes, definiram as formas ou explicaram os processos literários. O objetivo do seu trabalho só está alcançado quando tiverem esclarecido o significado do texto bíblico como Palavra atual de Deus». (VD 32, 33)
O Catecismo da Igreja Católica afirma que “segundo uma antiga tradição, podemos distinguir dois sentidos da Escritura: o sentido literal e o sentido espiritual, sendo que este último é subdividido em sentido alegórico, moral e anagógico. A concordância profunda entre os quatro sentidos garante toda sua riqueza à leitura vida da Escritura na Igreja” (115). É precisamente sobre esses dois sentidos que a Verbum Domini esclarece no seu número 37:
 
Sentido literal e sentido espiritual
 
37. Como foi afirmado na assembleia sinodal, um significativo contributo para a recuperação de uma adequada hermenêutica da Escritura provém de uma renovada escuta dos Padres da Igreja e da sua abordagem exegética. Com efeito, os Padres da Igreja oferecem-nos, ainda hoje, uma teologia de grande valor, porque no centro está o estudo da Sagrada Escritura na sua integridade. De fato, os Padres são primária e essencialmente «comentadores da Sagrada Escritura». O seu exemplo pode «ensinar aos exegetas modernos uma abordagem verdadeiramente religiosa da Sagrada Escritura, e também uma interpretação que se atém constantemente ao critério de comunhão com a experiência da Igreja, que caminha através da história sob a guia do Espírito Santo».
 
Apesar de não conhecer, obviamente, os recursos de ordem filológica e histórica à disposição da exegese moderna, a tradição patrística e medieval sabia reconhecer os vários sentidos da Escritura, a começar pelo literal, isto é, «o expresso pelas palavras da Escritura e descoberto pela exegese segundo as regras da recta interpretação». Por exemplo, São Tomás de Aquino afirma: «Todos os sentidos da Sagrada Escritura se fundamentam no literal». É preciso, porém, recordar-se de que, no período patrístico e medieval, toda a forma de exegese, incluindo a literal, era feita com base na fé, não havendo necessariamente distinção entre sentido literal e sentido espiritual. A propósito, recorde-se o dístico clássico que traduz a relação entre os diversos sentidos da Escritura:
 
Littera gesta docet, quid credas allegoria,
Moralis quid agas, quo tendas anagogia.
A letra ensina-te os fatos [passados], a alegoria o que deves crer,
A moral o que deves fazer, a anagogia para onde deves tender.
 
Sobressai aqui a unidade e a articulação entre sentido literal e sentido espiritual, o qual, por sua vez, se subdivide em três sentidos que descrevem os conteúdos da fé, da moral e da tensão escatológica.
 
Em suma, reconhecendo o valor e a necessidade – apesar dos seus limites – do método histórico-crítico, pela exegese patrística, aprendemos que «só se é fiel à intencionalidade dos textos bíblicos na medida em que se procura encontrar, no coração da sua formulação, a realidade de fé que os mesmos exprimem e em que se liga esta realidade com a experiência crente do nosso mundo». Somente nesta perspectiva se pode reconhecer que a Palavra de Deus é viva e se dirige a cada um de nós no momento presente da nossa vida. Continua assim plenamente válida a afirmação da Pontifícia Comissão Bíblica que define o sentido espiritual, segundo a fé cristã, como «o sentido expresso pelos textos bíblicos quando são lidos sob o influxo do Espírito Santo no contexto do mistério pascal de Cristo e da vida nova que dele resulta. Este contexto existe efetivamente. O Novo Testamento reconhece nele o cumprimento das Escrituras. Por isso, é normal reler as Escrituras à luz deste novo contexto, o da vida no Espírito».
Tomando por base a libertação do povo de Israel da escravidão do Egito tem-se o sentido literal, que é exatamente esse que a frase explicita. Contudo, não é possível, como já foi dito, parar no sentido literal. É preciso perceber que toda a Escritura fala de Jesus Cristo. Assim, surge o sentido espiritual, que subdivide-se em mais três: alegórico, moral e anagógico, conforme já citado do Catecismo. Diante disso, é preciso extrair esses três sentidos daquele fato tomado como exemplo: a libertação do povo de Israel da escravidão do Egito.
 
O sentido alegórico pode estar na água do Mar Vermelho o batismo; a libertação do faraó, a libertação do demônio, a água do Mar Vermelho se abriu por causa da vara de Moisés, uma alegoria com a cruz de Cristo, os soldados afogados no Mar Vermelho, uma alegoria com o pecado, e assim sucessivamente. Tal sentido é verdadeiro e todo ele remete a Cristo.
 
O sentido moral reside no fato de que a Bíblia ensina como proceder moralmente: a coragem de Moisés em enfrentar o Faraó, a murmuração do povo de Israel que não queria obedecer, o chamado do povo à confiança em Deus, ou seja, as virtudes morais que se manifestam nos fatos narrados.
 
Por fim, o sentido anagógico, que é aquele que aponta sempre para o Céu, para a salvação eterna, portanto, a leitura da Sagrada Escritura conduz sempre para pátria celeste.
 
Desta forma, fica bem claro que não se pode parar no sentido primeiro, ou seja, no sentido literal. É preciso avançar, como bem ensina o Papa Bento XVI, nos texto já citados e, para encerrar, no número 38 da mesma Verbum Domini:
 
38. Para se recuperar a articulação entre os diversos sentidos da Escritura, torna-se então decisivo identificar a passagem entre letra e espírito. Não se trata de uma passagem automática e espontânea; antes, é preciso transcender a letra: «de fato, a Palavra do próprio Deus nunca se apresenta na simples literalidade do texto. Para alcançá-la, é preciso transcender a literalidade num processo de compreensão, que se deixa guiar pelo movimento interior do conjunto e, portanto, deve tornar-se também um processo de vida». Descobrimos assim o motivo por que um autêntico processo interpretativo nunca é apenas intelectual, mas também vital, que requer o pleno envolvimento na vida eclesial enquanto vida «segundo o Espírito» (Gl 5, 16). Deste modo tornam-se mais claros os critérios evidenciados pelo número 12 da Constituição dogmática Dei Verbum: a referida superação não pode verificar-se no fragmento literário individual mas em relação com a totalidade da Escritura. De fato, é uma única Palavra aquela para a qual somos chamados a transcender.
 
Este processo possui uma íntima dramaticidade, porque, no processo de superação, a passagem que acontece em virtude do Espírito tem inevitavelmente a ver também com a liberdade de cada um. São Paulo viveu plenamente na sua própria vida esta passagem. O que significa transcender a letra e a sua compreensão unicamente a partir do conjunto, expressou-o ele de modo radical nesta frase: «A letra mata, mas o Espírito vivifica» (2 Cor 3, 6). São Paulo descobre que «o Espírito libertador tem um nome e que a liberdade tem, consequentemente, uma medida interior: “O Senhor é Espírito, e onde está o Espírito do Senhor há liberdade” (2 Cor 3, 17). O Espírito libertador não é simplesmente a própria ideia, a visão pessoal de quem interpreta. O Espírito é Cristo, e Cristo é o Senhor que nos indica a estrada». Sabemos como esta passagem foi dramática e simultaneamente libertadora em Santo Agostinho; ele acreditou nas Escrituras, que antes se lhe apresentavam muito diversificadas em si mesmas e às vezes indelicadas, precisamente por esta superação que aprendeu de Santo Ambrósio mediante a interpretação tipológica, segundo a qual todo o Antigo Testamento é um caminho para Jesus Cristo. Para Santo Agostinho, transcender a letra tornou credível a própria letra e permitiu-lhe encontrar finalmente a resposta às profundas inquietações do seu espírito, sedento da verdade. (VD 38)
Assim, além do texto que o Catecismo oferece como base para o entendimento dos sentidos da Escritura, é possível apoiar-se na Exortação Apostólica Pós-sinodal Verbum Domini, do Santo Padre Bento XVI, que fala sobre a Palavra de Deus na Vida e na Missão da Igreja, especificamente sobre o tema mencionado nos números 29 ao 49. Tal documento pode também servir como forma de aprofundamento ao assunto contemplado.
 
Na próxima aula será estudado o Cânon das Escrituras.
 

fonte:padrepauloricardo