Papas do Séc. XIV – guerra, peste, Sta. Catarina de Siena e um papa doido

23/10/2014 12:08

Seguimos com as breves biografias dos papas do século XIV. Neste post, são tantas emoções! Quatro franciscanos queimados na fogueira, uma guerra de cem anos, uma peste avassaladora que dizimou boa parte da população europeia, uma santa (Catarina de Siena) implorando a volta do papa para Roma e, pra finalizar, os ataques de pelanca de um papa lelé da cuca. Ufa!

Só pra lembrar: continuamos no período do “papado de Avignon”, quando os papas vivem exilados na França, impedidos de voltar para Roma. Este exílio durou cerca de 70 anos.

João XXII – Antes deste papa ascender ao trono, o velho e chato filme da sede vacante repetiu-se novamente. Foram dois anos em que a cristandade ficou sem papa em virtude das divergências internas (a sede do papado não era mais em Roma, e sim na França, claro que ia dar nisso).  Os cardeais não se entendiam. Interveio o Rei Felipe V, um dos reis malditos. Através de um engodo, ele reuniu um conclave em Lyon e só deixou os cardeias a pão e água (não necessariamente os dois juntos), para elegerem um papa bem rapidinho.

o_nome_da_rosaO filho de sapateiro, médico e advogado (depois dizem que não havia ascensão social na sociedade medieval) Jacques d’Euse foi aclamado como Papa João XXII. As principais realizações de seu papado foram: ampliação do poder papal sobre as nomeações, proibição da posse de mais de um benefício pelo clero, divisão do território das grandes dioceses, remarcação das fronteiras e criação de um tributo sobre benefícios que aplicou-se em toda França (pelo menos na teoria).

João XXII não era um papa muito querido dos franciscanos (talvez por isso a imagem que legou-se dele na cultura pop, estampada nas páginas do livro “O Nome da Rosa”, de Umberto Eco, seja a de um monstro sanguinário). Ele interveio na disputa entre os conventuais e espirituais franciscanos, e deu razão aos primeiros. Pra vocês terem uma ideia, na prática, os franciscanos espirituais eram muito mais próximos dos hereges cátaros do que dos franciscanos mesmo. Assim, 25 franciscanos espirituais foram bater um papinho com os inquisidores, que terminaram por mandar para a churrasqueira quatro deles (isso em 1318).

Não vou entrar no mérito, não li os processos e não sei o quê os franciscanos espirituais estavam aprontando. Mas é importante notar: a “violenta” e “cruel” inquisição, mesmo com o papa sob a pressão de uma influência intelectual, não viu razão para condenar quase 80% dos acusados. Esse fato é notável, porque esse percentual é muito mais alto do que o usual médio da inquisição. Depois desse triste acontecido, os franciscanos baixaram a bola e submeteram-se ao papa, e somente uma minoria foi excomungada, em 1329.

João XXII foi papa de 1316 a 1334.

Bento XII – Duas coisas destacam-se no papado de Bento XII: a primeira é a promulgação da bula “Benedictus Deus” de 1336, que é ex-cathedra, ou seja, infalível; a segunda, não tão agradável (aliás, nada agradável), foi o início da Guerra dos Cem Anos entre França e a Inglaterra, em virtude de um carregamento de croissants estragados que deixou os ingleses muito revoltados na hora do chá (isso é piada, viu!).

O Papa era um monge cisterciense, tocado pelo Espírito Santo, que tinha como meta a observância do zelo pastoral dos seus cardeias. Suas principais realizações foram a regulamentação da autoridade temporal sobre as dioceses e a definição dos direitos e deveres da penitência sacra. Papa de 1337 a 1342.

Clemente VI - Monge beneditino e quarto papa de Avignon. Após sua eleição, recebeu uma delegação romana que lhe implorou que retornasse para a Cidade Eterna. Em virtude da bagunça ainda reinante naquelas bandas, o papa disse: “Não, muito obrigado”. Desembolsou uma grana preta e comprou para o papado a cidade de Avignon.

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Penitentes se autoflagelavam para obter de Deus o favor de afastar a peste

Clemente, monge beneditino de origem, era um homem bom e caridoso. Foi marcante sua defesa dos judeus quando Avignon foi atingida pela peste negra, entre 1348-49. Milhões de pessoas morriam em toda a Europa. A população, desesperada, achava que os responsáveis eram os filhos de Abraão, e os perseguia. O Papa foi também um gigante na defesa dos pobres e aflitos durante a crise.

Foi a bula Unigenitus, de autoria desse papa, que propiciou a defesa da questão das indulgências que o monge demoníaco (Lutero) utilizou como desculpa para apregoar suas 95 teses.

Politicamente, seu papado foi marcado pelo fracasso em cessar a beligerância entre Inglaterra e França na Guerra dos Cem Anos. Papa de 1342 a 1352.

Inocêncio VI - Etienne Aubert (este era seu nome de batismo) invalidou o acordo que dividia as rendas entre o papa e o colégio cardinalício. Por essa época, influenciados mais por gente como Wycliffe, perambulavam pelos campos os chamados “franciscanos espirituais”, que, como já dissemos, tiveram que bater um papinho com a rapaziada de São Domingos (inquisidores).

Com a continuidade da Guerra dos Cem Anos, o papa tentou de todas as formas impedir o reinício das hostilidades. Essa não foi uma campanha de guerra constante, era coisa de cavaleiro, muito difícil de entender pela nossa mentalidade moderna e assassina, herdada do desamor tonitruante da Revolução Francesa. É importante apenas saber que não foi uma guerra como entendemos em termos modernos.

Inocêncio VI passou por maus bocados em Avignon em 1360, quando a cidade teve suas comunicações cortadas. Papa de 1352 a 1362.

Urbano V - Esse monge beneditino foi responsável pelo retorno da corte papa para Roma por um breve período. Teve força para quebrar a resistência da monarquia francesa, mas seu sonho não vingou em virtude das dificuldades encontradas na Cidade Eterna. Retornou a Avignon, apesar dos apelos da coroa de Aragão e da Rainha Santa da Suécia, Brígida.

Triste e cansado, Urbano V morre em Avignon, em 1370. Papa de 1362 a 1370.

Gregório XI - Eleito aos 42 anos de idade, Pierre-Rouger de Beaufort possuía o mesmo sonho de seu antecessor: retirar o papado do seu exílio na França, retornando para seu local de direito, Roma. Tentou levantar fundos para a Igreja, que a essa altura se via falida (mais uma vez) e, entre outros feitos, organizou uma cruzada para libertar os lugares santos da Palestina.

Santa Catarina de Siena, chamando-o de “doce Cristo na terra”, escreveu uma carta ao Papa, implorando que ele voltasse para Roma (tradução nossa, fonte EWTN):

“Vem, vem, e não mais resista à vontade de Deus que chama; as ovelhas com fome aguardam a sua vinda para segurar e possuir o lugar de seu antecessor (…), o Apóstolo Pedro. Vossa Santidade, como o Vigário de Cristo, deve permanecer em seu próprio lugar. Venha, então, venha, e não mais se atrase,(…) e não tema qualquer coisa que possa acontecer, pois Deus estará contigo”.

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Sta. Catarina (de véu branco e manto roxo) acompanha o Papa Gregório VI até Roma, em janeiro de 1377. Afresco de Giorgio Vasari

Enfrentando a oposição do Rei e da maior parte do colégio cardinalício – composto por franceses que não queriam ver reduzida a influência da França na administração da Igreja –, o Papa cede aos apelos de Santa Catarina e deixa Avignon, em direção a Roma. No caminho, ele ainda pensa em amarelar e voltar atrás, mas a santa o encoraja a seguir adiante.

Gregório procurou aproximar-se da Igreja Oriental e esforçou-se para resolver as querelas internas que sacudiam toda a Itália.  Sem alternativa, lá vai de volta o Papa para Avignon.

Desiludido e cansado, tal como seu antecessor, com os homens se matando numa escala inimaginável, a saúde do papa deteriorou rapidamente. Sua morte marca o início de uma das piores crises de toda a história da cristandade: o Grande Cisma do Ocidente. Assunto tão complexo que retornaremos a ele posteriormente. Clemente faleceu em março de 1378 e seu sucessor causou uma confusão dos diabos. Papa de 1371 a 1378.

Urbano VI - O papa Urbano é um desses grandes mistérios da história. Foi o último dos papas a ser eleito sem ser cardeal: era arcebispo. Sua sede era em em Avignon, mas sua eleição foi feita pelos italianos, ansiosos pelo retorno do papa à Itália; só esqueceram de consultar o resto da rapaziada. O resultado disso foi que, entre 1378 a 1417, houve dois papas paralelamente: um em Roma (antipapa) e outro em Avignon (papa legítimo). E o povo confuso no meio disso.

 

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Antes de ser eleito Papa, Urbano VI era considerado sábio e ponderado. Mas, ao alcançar o Trono de Pedro, tornou-se instável, destemperado e um tanto quanto maluco. Sua tibieza para controlar o colégio cardinalício culminou com um sínodo que escolheu Roberto de Genebra como antipapa (para eles, papa), que adotou o nome de Clemente VII. Mais preocupado com sua legitimidade do que com o estrago espiritual que essas querelas provocam, saiu distribuindo excomunhões. Isso, em vez de solucionar a crise, só a agravou.

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Urbano VI dando um de seus ataques de pelanca. Ilustração de Greg Harlin

Urbano VI teve uma morte patética: como provavelmente o papamóvel estava na revisão, saiu numa procissão montado numa mula. De repente, caiu, e sua morte foi atribuída à queda… mas ventila-se na historiografia que tenha sido envenenado. Papa de 1378 a 1389.

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O nosso último papa tem seu papado prolongado para além dos limites do século XIV, adentrando ao século XV e, portanto, ele abrirá o nosso retorno. A Série “Os Papas” vai dar uma pausa longa agora, mas ainda temos muito a contar. Seguiremos na semana que vem com a aguardada série sobre Lutero, que ocupará destaque na parte história da Igreja aqui nO Catequista. Vamos conhecer a vida, obra e peripécias do monge maluco.

Até a próxima, com a bênção da Virgem Maria e de Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo.

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