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a) O estudante deve ser humilde.
A humildade, diz Hugo de São Vitor, é o princípio do aprendizado. O estudante que desde o início não é movido pela humildade, nunca alcançará a sabedoria. Vamos examinar, a este respeito, a introdução do Opúsculo sobre o Modo de Aprender:
diz Hugo de São Vítor,
"é o princípio do aprendizado,
e sobre ela, muita coisa tendo sido escrita,
as três seguintes, de modo especial,
dizem respeito ao estudante.
A primeira é que não tenha como vil
nenhuma ciência e nenhuma escritura.
A segunda é que não se envergonhe
de aprender de ninguém.
A terceira é que,
quando tiver alcançado a ciência,
não despreze aos demais.
Muitos se enganaram por quererem parecer
sábios antes do tempo,
pois com isto se envergonharam
de aprender dos demais o que ignoravam.
Tu, porém, meu filho,
aprende de todos de boa vontade
aquilo que desconheces.
Serás mais sábio do que todos,
se quiseres aprender de todos.
Nenhuma ciência, portanto, tenha como vil,
porque toda ciência é boa.
Nenhuma escritura, ou pelo menos,
nenhuma lei desprezes, se estiver à disposição.
Se nada lucrares, também nada terás perdido.
Diz, de fato, o Apóstolo:
"Omnia legentes,
quae bona sunt tenentes" .
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O bom estudante deve ser
humilde e manso,
inteiramente alheio aos cuidados do mundo
e às tentações dos prazeres,
e solícito em aprender de boa vontade de todos.
Nunca presuma de sua ciência;
não queira parecer douto, mas sê-lo;
busque os ditos dos sábios,
e procure ardentemente ter sempre
os seus vultos diante dos olhos da mente,
como um espelho".
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b) O que é a humildade.
A humildade, segundo Hugo de São Vítor, coincide com a primeira bem aventurança, aquela da qual Jesus dizia:
"Bem aventurados os pobres de espírito,
porque deles é o Reino dos Céus",
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e que é o ponto de partida da vida cristã. Sobre esta passagem diz Hugo de São Vitor:
"Bem aventurados os pobres de espírito,
porque deles é o Reino dos Céus:
há os que são ricos de espírito,
e há os que são pobres de espírito.
Os ricos de espírito são os soberbos;
os pobres de espírito são os humildes".
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Allegoriae Utriusque
Testamenti, NT. II, 1
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c) Renúncia.
Disse Jesus que quem não renuncia a si mesmo não poderia ser seu discípulo. Não era outro o objetivo dos alunos de Hugo de São Vitor senão serem discípulos de Cristo, aprenderem o que é o Evangelho, como se o vive e como se pode ensiná-lo aos outros. Assim também Hugo fêz exigências similares às de Cristo aos seus estudantes. O estudante que desejar elevar-se até Deus deve ser, conforme já vimos,
"humilde e manso,
inteiramente alheio aos cuidados do mundo
e às tentações dos prazeres,
solícito em aprender
de boa vontade de todos".
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d) Buscar em primeiro lugar a verdade.
diz Hugo de São Vitor,
"que aquele que tiver iniciado este caminho
procure aprender nos livros em que estudar
não apenas pela beleza do fraseado,
mas também pelo estímulo
que eles oferecem à prática das virtudes,
de tal maneira que o estudante procure neles
não tanto a pomposidade ou a arte das palavras,
mas a beleza da verdade".
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Eis algo que, na pedagogia vitorina, é de essencial importância.
Jesus promete, no Evangelho, como prêmio aos que seguirem os seus preceitos, que encontrarão a verdade e a verdade os libertará, ou tornará livres. Ao dizer isto, Jesus se referia à verdade que se alcança através do dom do Espírito Santo a que as Escrituras denominam de sabedoria, um objetivo elevadíssimo, ao qual se ordena todo o desenvolvimento da vida espiritual. O estudante, porém, que desejar chegar a tanto, deverá acostumar-se primeiro a deixar-se libertar continuamente através de verdades menores. Consideremos, pois, primeiramente, do que libertam estas verdades menores.
Na vida humana o desenvolvimento da vida do intelecto é sempre precedido pelo desenvolvimento da vida dos sentidos, e é só gradualmente que se uma se emancipa à outra. Mesmo assim, porém, isto só ocorre com naturalidade quando a vida das virtudes e da inteligência se inicia precocemente e bem, algo raramente observado nos dias de hoje. Quando não é este o caso, o homem desenvolve uma visão do mundo que partirá de uma apreciação fortemente baseada nos sentidos, cujos critérios de validade serão a servilidade na imitação dos costumes sociais e a força das paixões e não a evidência da verdade. Nestas condições, o desenvolvimento da inteligência será orientado para que esta sirva de instrumento para a vida dos sentidos e das paixões.
No Eclesiástico pode-se ler:
"Assim como o Sol resplandecente
ilumina todas as coisas,
assim da glória do Senhor
estão cheias as suas obras".
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A primeira parte desta sentença é evidente para todos, em qualquer época e lugar. Já a segunda será percebida com naturalidade, mas de forma gradual e com força sempre crescente, naqueles em que a virtude e a inteligência se iniciaram desde cedo, assim que se tiverem apresentado as primeiras possibilidades de o fazerem; para as demais pessoas, a segunda parte da sentença do Eclesiástico pouca coisa significará além de uma simples poesia que se esquece após ter sido ouvida. Por mais que os primeiros tentem explicar aos segundos que algo de verdadeiramente extraordinário nos está sendo apontado na segunda parte desta passagem do Eclesiastes, eles não conseguirão entender a razão para tanto entusiasmo. Embora freqüentemente eles próprios não se dêem conta deste fato, as psicologias de ambos estes grupos de homens foram construídas de um modo estruturalmente diverso e é por isso que o Eclesiastes também nos diz a este respeito:
"Os perversos dificultosamente se corrigem,
e o número dos insensatos é infinito;
se a árvore cair para a parte do meio dia,
ou para a do norte,
em qualquer lugar onde cair,
aí ficará".
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Deve-se considerar, além disso, que mesmo para os homens de ambos os casos, a mensagem contida na Revelação estará sempre situada num plano extraordinariamente mais elevado do que aquele em que os homens costumam colocar-se. A este respeito nos diz, de fato, o profeta Isaías:
"Os meus pensamentos não são
os vossos pensamentos,
nem os meus caminhos são
os vossos caminhos,
diz o Senhor.
Quanto o céu sobe em elevação à terra,
tanto se elevam os meus caminhos
acima dos vossos,
e os meus pensamentos
acima dos vossos".
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Esta é a razão por que todos aqueles que se dedicam ao estudo da Ciência Sagrada se deparam constantemente com uma visão do mundo que difere enormemente de suas opiniões e pontos de vista pessoais. Ainda que se tratem das melhores pessoas, elas encontram incessantemente neste estudo a proposta de vivência de virtudes e apresentação de verdades que estarão em conflito com os seus pequenos pontos de vista pessoais. Se o estudo da Ciência Sagrada é conduzido corretamente isto não será uma ocorrência fortuita, mas algo que deverá acontecer continuamente, pois esta é precisamente uma das justificações para a sua existência.
O que fazer, porém, quando nos encontrarmos diante de um evento como este? Admirar a beleza da verdade apreendida não será suficiente; será necessário renunciar decididamente aos nossos próprios pontos de vista, que freqüentemente representam o atrelamento da inteligência à vida das paixões, libertando-a para habituá-la a seguir mais docilmente a evidência da verdade. A menos que estejamos dispostos a isto estaremos estudando, no dizer de Hugo de São Vitor, apenas pela "beleza do fraseado e pela arte das palavras" e não "pela prática das virtudes e pela busca da verdade".
Deve-se considerar, ademais, que há um motivo mais específico pelo qual nesta passagem do Didascalicon Hugo de São Vitor se referiu aos alunos que buscam no estudo a beleza do fraseado e a arte das palavras como sendo aqueles que se desviaram da verdadeira meta. É que em sua época, assim como em todo o mundo antigo, o principal desvio da educação se manifestou sob a forma da educação retórica, a qual deu origem, durante a Renascença, à educação que hoje se conhece como humanista, em que o aluno estudava para alcançar uma bagagem razoável de cultura geral através da qual adquiriria boas maneiras e a capacidade de escrever e falar corretamente e bem. A expressão de Hugo de São Vitor, ao dizer que estes alunos se aproximavam da escola já com a idéia preconcebida de que ali estavam para buscar "a beleza do fraseado e a arte das palavras" descreve perfeitamente a atitude fundamental que à época norteava a muitos em seus estudos. Hoje em dia não percebemos mais a força que estas poucas palavras de Hugo tinham porque o principal desvio da educação consiste em estudar com a finalidade de aprender alguma profissão ou técnica com a qual pode-se conseguir, ou não, um retorno financeiro. Este, na ótica da pedagogia vitorina, é um desvio ainda mais grave e ao qual só pode ter-se chegado por ter-se passado primeiro pelo anterior sem que se tivesse percebido suficientemente toda a gravidade do que estava ocorrendo.
Para Hugo de São Vitor o que o estudante deve procurar com o estudo é o libertar-se, através da busca da verdade, da estreita visão de mundo que lhe é imposta pela vida das paixões e de que vive tanto ele como a sociedade à qual ele imita. Estas coisas aprisionam a inteligência e não lhe permitem seguir a luz da graça e a própria evidência de uma verdade que deveria, à medida em que é buscada, tornar-se cada vez mais radiante.
e) Método.
"Aquele que diante de uma multidão
de livros não guarda o modo e a
ordem da leitura",
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continua Hugo de São Vitor,
"como que andando em círculos no meio
de uma densa floresta, perde-se do reto caminho.
É de pessoas assim que a Sagrada Escritura diz
que estão sempre aprendendo, mas nunca
chegam ao conhecimento da verdade".
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f) Nunca abandonar as boas obras.
"Saiba o estudante que não chegará
ao seu propósito se se dedicar de tal maneira
apenas ao estudo que se veja
obrigado a abandonar as boas obras".
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g) O estudo deve ser um deleite.
"Saiba também que não chegará
ao seu propósito se,
movido por um vão desejo de ciência,
dedicar-se às escrituras obscuras
e de profunda inteligência,
nas quais a alma mais se preocupa
do que se edifica.
Para o filósofo cristão
o estudo deve ser uma exortação,
e não uma preocupação;
deve alimentar os bons desejos,
e não secá-los.
Como gostaria de mostrar
àqueles que se puseram ao estudo por amor da virtude,
e não das letras,
o quanto é importante para eles
que o estudo não lhes seja ocasião de aflição,
mas de deleite.
Quem , de fato, estuda as Escrituras como preocupação
e, por assim dizer,
as estuda para aflição do espírito,
não é filósofo, mas negociante,
e dificilmente uma intenção
tão veemente e indiscreta
poderá estar isenta de soberba.
Deve-se considerar também que o estudo
de duas maneiras costuma afligir o espírito,
a saber, pela qualidade,
se se tratar de um material muito obscuro,
e pela sua quantidade,
se houver demais para estudar.
Em ambos estes casos deve-se utilizar de grande moderação,
para que não aconteça
que aquilo que é buscado como uma refeição
venha a ser utilizado para sufocar-nos.
Há aqueles que tudo querem estudar;
tu não contendas com eles,
seja-te suficiente a ti mesmo:
que nada te importe
se não tiveres lido todos os livros.
O número de livros é infinito,
não queiras seguir o infinito.
Onde não existe o fim, não pode haver repouso;
onde não há repouso, não há paz;
e onde não há paz, Deus não pode habitar".
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h) O que estudar.
Eis uma questão impossível de se responder inteiramente em poucas páginas. Segundo Hugo de São Vítor, o estudo deve conduzir à aquisição da Ciência Sagrada, através da qual o aluno possa conduzir-se, por sua vez, no caminho da virtude e da contemplação. Surge então a questão de o que, segundo este modo de se entender o estudo, deve- se estudar ou deixar de estudar.
A primeira resposta que encontramos nos escritos de Hugo de São Vitor a este respeito é que se deve estudar tudo, sem desprezar nada. Uma afirmação como esta pode parecer, num primeiro exame, um despropósito, mas Hugo, neste ponto, foi bastante claro. Segundo ele nos explicou no início do Opúsculo sobre o Modo de Aprender, o aluno que despreza de antemão qualquer forma de conhecimento, o aluno que "tem como vil alguma ciência ou alguma escritura", mostra não possuir com isto a virtude da humildade, e a humildade é, segundo Hugo, "o princípio de todo o aprendizado". E no sexto livro do Didascalicon ele vai ainda mais longe; ali ele nos diz o seguinte:
"Eu ouso afirmar que nunca desprezei
nada que pertencesse ao estudo;
ao contrário,
freqüentemente aprendi muitas coisas que outros
as tomariam por frívolas ou mesmo ridículas.
Algumas destas coisas foram pueris,
é verdade; todavia, não foram inúteis.
Não digo isto para jactar-me de minha ciência,
mas para mostrar que o homem que prossegue melhor
é o que prossegue com ordem,
não o homem que, querendo dar um grande salto,
se atira no precipício.
Assim como as virtudes,
assim também as ciências tem os seus degraus.
É certo, tu poderias replicar:
`Mas há coisas que
não me parecem ser de utilidade.
Por que eu deveria manter-me
ocupado com elas?'
Bem o disseste.
Há muitas coisas que,
consideradas em si mesmas,
parecem não ter valor
para que se as procurem.
Mas, se consideradas
à luz das outras que as acompanham,
e pesadas em todo o seu contexto,
verifica-se que sem elas
as outras não poderão ser compreendidas
em um só todo, e,
portanto, de forma alguma
devem ser desprezadas.
Aprende a todas,
verás que nada te será supérfluo.
Uma ciência resumida não é uma coisa agradável".
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Se este texto do Didascalicon é claro ao afirmar que o estudo não deve excluir de seu interesse nenhuma forma de conhecimento, ele não é porém menos claro ao explicar as razões pelas quais se recomenda tal preceito. Hugo quer que o aluno nada exclua de seu interesse para com isto aprender a buscar metodicamente a integridade do conhecimento que é um todo ordenado cujas partes principais não podem ser compreendidas em um só conjunto sem o concurso das partes secundárias. Se o estudante, portanto, não deve desprezar nenhuma forma de conhecimento, isto não significa que deve aplicar-se a todas por igual ou preferir umas às outras sem critério. Indubitavelmente, segundo Hugo de São Vitor, a parte principal do estudo é o conhecimento das Sagradas Escrituras e da Ciência Sagrada que dela deriva.
O que, porém, e como deve ser estudado para se alcançar o conhecimento desta Ciência Sagrada é algo que não é possível de ser respondido nas poucas páginas deste texto. Há, entretanto, pelo menos um critério tão importante que não pode deixar de ser aqui mencionado. Pelas explicações e pelos exemplos dados por Hugo de São Vítor, depreende-se que, independentemente da questão do conteúdo do estudo, ele deve ser conduzido preferencialmente através dos textos cujos autores escreveram manifestamente sob a influência dos dons de entendimento e sabedoria, e que são, em geral, os escritos dos teólogos que também foram santos. A razão desta exigência consiste em que, conforme já havíamos apontado, o estudo deve ordenar-se, como ao seu fim último, à contemplação. Chama-se contemplação àquela operação da alma que surge no homem quando, sob a influência dos dons do Espírito Santo de entendimento e de sabedoria, a uma fé firme, constante e pura se acrescenta uma caridade intensa. Quando o homem consegue viver as virtudes teologais num grau tão alto a ponto de poder elevar-se à contemplação, esta se torna um dos principais meios de santificação para o homem. As obras dos teólogos em que se manifesta a influência do dom de entendimento ou do dom de entendimento elevado pelo dom de sabedoria são obras que derivam, portanto, do próprio exercício da vida contemplativa. "Elas são doces e repletas de amor pela vida eterna", diz Hugo de São Vitor no quinto livro do Didascalicon. O convívio do aluno com elas, ao contrário das demais obras, ainda que tratem dos mesmos assuntos, habitua-o gradativamente a perceber que elas têm uma origem diversa dos livros comuns e acaba por auxiliá-lo a conduzir-se na busca da contemplação. Ora, é justamente este o fim a que se ordena o estudo, e é por isto que as próprias Sagradas Escrituras já distingüiam entre estes e os demais livros:
"As palavras dos sábios",
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diz o Eclesiastes,
"são como aguilhões,
e como cravos fixados no alto,
que por meio do conselho dos Mestres
nos foram comunicadas pelo único Pastor.
Não busques, pois,
meu filho,
mais alguma coisa além destes.
Não se põe termo
em multiplicar livros,
e a meditação freqüente
é aflição da carne".
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i) Estudar com o propósito de ensinar.
Eis algo que, tanto quanto sabemos, Hugo não ensinou por escrito, mas o fêz mais do que manifestamente pelo exemplo. Aqueles que estudam para um dia poderem ensinar, seguindo o preceito de Cristo, são os que encontrarão a inspiração do Espírito Santo. E foi a aqueles a quem Jesus acabava de pedir que ensinassem que Ele também prometeu que permaneceria com eles até o fim dos tempos (Mat 28,20).
j) Aspirar às coisas mais altas.
termina aqui Hugo de São Vitor,
"é mostrar como aqueles
que de boa vontade se dedicam
ao aprender são dignos de louvor.
É necessário, porém,
e tarefa de grande importância,
prevenir aos eruditos para que não ocorra
que talvez voltem os seus olhos
para aquilo que ficou para trás
e consolar aos principiantes
se às vezes desejam já chegar
onde aqueles estão.
Nosso propósito deverá ser, portanto,
o de subir sempre.
Roguemos, pois, à sabedoria,
para que se digne resplandecer em nossos corações
e iluminar-nos em seus caminhos
para introduzir-nos naquele banquete
puro e sem animalidade".
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