8. O Edito de Milão e a Heresia Ariana

05/03/2014 16:54

 

O Imperador Constantino promoveu a paz entre o Império Romano e os cristãos. Cessada a perseguição, teve início uma fase de crescimento do Cristianismo, porém, uma nova e grave ameaça toma corpo e avança rapidamente sobre o mundo cristão: o arianismo. Saiba como o mundo dormiu cristão e acordou ariano.

 

Após estabelecer a paz no lado ocidental do Império com a vitória sobre Magêncio e seus exércitos, Constantino decide encontrar-se com Licínio, o Imperador do Oriente. Numa manobra política, oferece a sua irmã, Constança, como esposa para Licínio. A reunião para celebrar as bodas deu-se em Milão e durante as tratativas para o casamento, Constantino e Licínio decidiram sobre diversos pontos políticos, inclusive sobre os cristãos. Dessas reuniões resultou o documento que mudaria radicamente o rumo do cristianismo na história: o chamado Edito de Milão. Daniel-Rops, em sua obra "A Igreja dos Apóstolos e dos Mártires" que norteia esse curso, tece o seguinte comentário explicando em que consistiu o documento:

A expressão não deve ser tomada ao pé da letra. Não chegou até nós qualquer texto, assinado e promulgado em Milão, que fixe as bases da política cristã. O que conhecemos são apenas algumas cartas de Constantino e outras de Licínio, as primeiras mencionadas por Eusébio e as segundas por Lactâncio, que transmitem, acompanhadas de comentários, um certo número de cláusulas. Tem-se perguntado se o Edito de Milão não teria sido um simples "protocolo" assinado pelos dois Augustos após as suas entrevistas, com o fim de passar a limpo as decisões que tinham tomado em comum. (p. 409)

O Edito de Milão, portanto, foi uma série de cláusulas, as quais podem ser reduzidas a uma só: "A liberdade de religião não pode ser tolhida e é necessário permitir, quanto às coisas divinas, que cada um obedeça às moções de sua consciência". A liberdade de culto foi estendida aos cristãos, os quais vinham sendo duramente perseguidos desde Diocleciano. Na sequência, uma série de privilégios que acabou por fortalecer o cristianismo:

A Igreja, agora reconhecida, tem o direito de ser ajudada a reconstruir as suas ruínas: o culto, agora lícito, deve ter condições para poder ser praticado. As decisões imperiais distinguem duas espécies de construções cristãs: as igrejas, "lugares de assembléias", e as propriedades coletivas, certamente os cemitérios e outras. Sem indenização, sem reclamação de preço, sem demora e sem processo, tudo será restituído aos fiéis, e o Estado se encarregará de indenizar terceiros que tenham adquirido de boa fé esses bens. O edito de Galério, em 311, e a decisão de Magêncio na mesma ocasião, haviam já estabelecido regras muito aproximadas, mas por razões de oportunismo político ou de interesse pessoal do imperador. Mais importantes eram estas prescrições de 313, pois associavam o princípio das reparações legítimas ao da liberdade espiritual. Era o início de uma nova ordem. (p. 410)

Constantino não transformou o cristianismo em religião oficial do Império Romano, que continuou a ser fundamentalmente pagão. Sendo certo, porém, que a partir da chamada paz constantiniana o cristianismo pôde crescer cada vez mais. No entanto, foi nessa época que afloraram também os conflitos teológicos, reprimidos durante a grande perseguição. Uma segunda grande crise na Igreja surgiu: a crise ariana.

Naquela época havia duas grandes cidades no Oriente, Alexandria, no Egito e Antioquia, na Síria Romana (que, atualmente pertence à Turquia e tem o nome de Antakya), nas quais grandes pensadores elaboravam as bases teológicas cristãs. Nas duas cidades havia uma riqueza filosófica e cultural muito grande. Precisamente nesta época florescia o neo-platonismo e, ao mesmo tempo, um grande movimento cultural judaico, ligado a Filão de Alexandria; todo o processo de tradução do Antigo Testamento do hebraico para o grego, na renomada tradução dos Setenta; também havia a famosa biblioteca de Alexandre que, infelizmente, foi queimada por César ao tomar posse da cidade. Em termos geográficos, Alexandria era muito importante, pois localizada próxima ao delta do Rio Nilo. E foi nela que nasceu a heresia ariana. Seu idealizador:

Ário - tinha em si uma mistura inextrincável de qualidades e defeitos, fundidos no cadinho desse orgulho que encontramos sempre nos grandes hereges. Nada nele era insignificante: nem a inteligência, nem o caráter, nem a violência, nem a ambição. O seu belo rosto macilento, o seu ar de austeridade modesta, a severidade serena e vibrante de suas palavras, tudo parecia feito para seduzir, e por isso eram muitas as jovens apaixonadas que o rodeavam. Sábio e dotado do dom da dialética como só o podia ter um oriental imbuído de espírito grego, era - segundo se diz - virtuoso, duro para consigo mesmo, dado a penitências e asceses, aureolado de dignidade e quase de santidade. Num Lutero que, mal largou o hábito, cedeu ao calor do sangue e se casou, as razões da sua rebelião podiam não parecer muito teológicas, mas, quanto a Ário, nada se podia dizer contra ele no plano moral; e não era menos perigoso por isso. (p. 446-447)

Ário foi ordenado já em idade avançada. Antes, porém, bebera em várias fontes de conhecimento, sendo profundo conhecedor de diversas doutrinas. Além disso, era um grande pregador, possuindo um talento nato para a publicidade. Pessoas de todas as partes de Alexandria passaram a frequentar sua paróquia em Baucalis apenas para ouvir-lhe as palavras, a sua grande erudição, tanto que chamou a atenção do bispo Alexandre, o qual optou pela via pacífica e convocou Ário e seus seguidores para exporem suas ideias perante um sínodo. Daniel-Rops explica o pensamento ariano da seguinte forma:

Como todas as heresias, partia de uma idéia justa: a da grandeza sublime e inefável de Deus. Único, não gerado, Deus é "Aquele que é", como já dizia o Antigo Testamento, o Ser absoluto, o Poder e a Eternidade absolutos. Até aqui tudo estava certo. Mas Ário acrescentava: "Deus é incomunicável, porque se se pudesse comunicar, teríamos de considerá-lo um ser composto, suscetível de divisões e mudanças", dedução que só a imprecisão dos termos tornava aceitável. Ora, continuava Ário, se Ele fosse composto, mutável e divisível, seria mais ou menos corporal; mas isso não pode ser, donde se conclui que é sem dúvida incomunicável e que, fora dEle, tudo é criatura, incluído Cristo, o Verbo de Deus. Aqui está o ponto exato em que se situa o erro: Jesus, o Cristo, o Filho, não é Deus como Pai; não é seu igual nem é da mesma natureza que Ele. Entre Deus e Cristo abre-se um abismo, o abismo que separa o finito do infinito. (p. 448)

A intenção de Ário era salvaguardar o monoteísmo, por isso dizia que se existe um só Deus, não é possível haver a trindade, pois isso equivaleria a três deuses. Para ele, Deus verdadeiro é o Pai. Dele veio o Filho. E somente aí o Espírito Santo. Trata-se da posição conhecida em teologia como subordinacionismo. Somente o Pai é Deus, o Filho é divino, mas não Deus e o Espírito Santo está numa categoria ainda mais inferior. Essa visão já existia anteriormente na Igreja, porém, os teólogos ainda não haviam encontrado uma linguagem que a traduzisse com clareza. Ário conseguiu. E embora tivesse contra si o seu bispo, possuía contatos com bispos de outras dioceses que concordavam com sua visão sobre a Trindade. Dentre eles estava o bispo de Nicomédia, chamado Eusébio. Assim, ao ser convocado pelo bispo Alexandre, sentiu-se amparado por sua rede de amigos e, de maneira muito tranquila, expôs ao sínodo o seu pensamento, em pequenas frases, fáceis de se entender. A reunião dos bispos foi descrita da seguinte maneira:

O sínodo decorreu num clima cheio de exaltação. Excetuados dois ou três, todos os bispos presentes estavam ao lado de Alexandre, isto é, da ortodoxia, e contra Ário. Houve momentos dramáticos, como quando o heresiarca, arrastado pela sua lógica, afirmou que Cristo era uma criatura e, portanto, teria podido errar e pecar, e a assembléia soltou um grito de horror. Ário foi condenado e com ele alguns clérigos de Alexandria, de Mareótis e da Cirenaica, que tinham aderido às suas teses. Recebeu ordem formal de submeter-se ou demitir-se. Durante algumas semanas, tentou ainda conservar o lugar de presbítero, mas logo verificou que, para travar a batalha, precisava sair do Egito. E saiu. (p. 450)

A saída de Ário não significou o fim da heresia, pelo contrário, o que havia sido "uma simples agitação local", tornou-se um "vasto movimento em contínua expansão por todo o Oriente, esse solo fértil para todo tipo de religiões estranhas, de teorias aberrantes e de inesgotáveis especulações sobre os mistérios divinos." Já no Ocidente, a heresia encontrou um campo não tão fecundo, pois os cristãos ocidentais eram "menos dados à diversão intelectual, se preocupavam mais com viver o cristianismo e integrá-lo no real do que com comentá-lo, o desmedido gosto oriental pelas palavras abriu às teses arianas um campo ilimitado."

Por meio de cartas, Ário contatou aqueles que supunha corroborarem com seu pensamento, cooptando-os. Ao tomar conhecimento dessa tática, o bispo Alexandre também dirigiu uma carta aos seus aliados, iniciando assim, uma intensa batalha.

No decurso do inverno de 323-324, não havia uma pessoa instruída no Oriente cristão que ignorasse estar iminente uma crise que prometia ser muito grave. Os bispos escreviam uns aos outros, quer a favor de Ário, quer contra ele. Alexandre recebia censuras de Eusébio de Cesaréia. O próprio heresiarca, para baralhar as cartas, fazia circular um "símbolo" em que, resumindo suas teses, as envolvia habilmente em tantas expressões de duplo sentido, frases equívocas e figuras de linguagem, que muitas pessoas bem intencionadas podiam ser induzidas em erro. (...) Quanto ao bom povo cristão, que a propaganda ariana cuidava muito de não esquecer, repetiam-se refrões de cânticos que o próprio Ário compusera e nos quais, sob a piedosa suavidade de palavras edificantes, se escondiam erros abomináveis. (p. 450-451)

Ao mesmo tempo, Constantino finalmente derrotava Licínio e se tornava o único Imperador Romano. Chegando na cidade de Nicomédia, "viu com horror que pesava sobre a Igreja uma ameaça de divisão bem pior do que aquele que ele pensava ter evitado na África". Após longas noites meditando sobre a grave crise, Constantino enviou cartas aos dois lados da disputa: ao bispo Alexandre e para Ário, pedindo que reconsiderassem e se colocassem novamente em comunhão. Para entregar as missivas designou o bispo Ósio de Córdova que, após ouvir as duas partes da contenda, decidiu-se por permanecer ao lado da Igreja, portanto, contra Ário. Contudo, o esperado acordo pretendido por Constantino não veio e, durante "um concílio provincial reunido em Antioquia para eleger um novo bispo terminava em tumulto, porque, tendo-se discutido a questão de Ário, três ou quatro prelados, entre os quais Eusébio de Cesaréia, tinham defendido descaradamente o herege." Algo deveria ser feito para encerrar aquela disputa que estava dividindo a Igreja de Cristo. Para tanto, Constantino convocou o primeiro concílio ecumênico da história da Igreja: o Concílio de Nicéia.

Constantino fez as convocações diretamente. Convidou pessoalmente cada um dos bispos, por meio de cartas repassadas do mais tocante respeito, no dizer de Eusébio. Quem foi convocado? Quem apareceu? Sempre cheio de entusiamo, Eusébio afirma que "a flor dos ministros de Deus chegou de toda a Europa, da Líbia e da Ásia" e que "uma só casa de orações, como que dilatava pelo poder divino reuniu sírios, cilicianos, fenícios, árabes, palestinos, gente do Egito, da Tebaida, da Líbia, da Mesopotâmia" e que se contavam também o bispo da Pérsia, macedônios, trácios, aqueus, epirotas, e até que "os mais distantes vieram da Espanha, como, por exemplo, um muito ilustre." (p. 453)

A discussão mais importante do Concílio versou sobre a Redenção. O diácono Atanásio colocou a questão em discussão nos seguintes termos: "a Redenção não terá sentido se não for o próprio Deus quem se tenha feito homem, se Cristo não for ao mesmo tempo verdadeiro Deus e verdadeiro homem." E mais, "o Filho não é uma criatura; existiu sempre e sempre se conservou ao lado de seu Pai, unido a Ele, distinto mas inseparável; foi sempre infalível e perfeito." O Concílio exprimiu este fato dizendo que "o Filho é consubstancial ao Pai."

O que se vê, portanto, é a inequívoca condenação do pensamento ariano. Apenas cinco bispos permaneceram publicamente com Ário e com ele foram para o exílio. Outros, mais astutos, empreenderam uma manobra para permanecer nas boas graças:

Pensaram que podiam fazer sobreviver as suas doutrinas com uma insignificante mudança de grafia. Substituíram a palavra homooúsios, que quer dizer "da mesma substância", pela palavra homoioúsios, que significa "de uma substância semelhante". Entre as duas palavras não há diferença senão de um iota, mas essa diferença, mínima na aparência, era fundamental, e temos de avaliar bem a importância da jogada. Entre homooúsios e homoioúsios, havia um abismo: de um lado, a identidade com Deus; do outro, a simples semelhança ou não-dissemelhança. O gênio sutil dos gregos aprendera perfeitamente a diferença, e os Padres ortodoxos orientais terão precisamente a missão histórica de afirmar a identidade, a despeito de todas as seduções, tentações e argúcias. Esta astúcia ortográfica havia ainda de ter consequências muito graves. (p. 456)

Quando os bispos voltaram para casa, porém, arrependeram-se de terem permanecido ao lado de Alexandre. O "partido" de Ário não havia morrido e seus integrantes trataram de demonstrar que era um absurdo existir uma profissão de fé com uma palavra que não existia na Sagrada Escritura. Ao mesmo tempo, Alexandre volta para casa juntamente com o seu diácono Atanásio, o qual é eleito novo bispo de Alexandria após a morte de Alexandre. O imperador Constantino, também influenciado pelos arianos, tergiversa, cancela punições e a heresia ariana toma corpo novamente. Com a morte de Constantino, novamente instala-se uma crise, pois seus dois filhos herdam o Império. O lado oriental do Império coube ao seu filho Constâncio e o lado ocidental a Constante. Constâncio era ariano e, por meio dele, o partido ariano terá um novo sucesso.

No Oriente, com a conversão do imperador ao arianismo, muitos bispos também aderiram à heresia. São Jerônimo define essa época com a seguinte frase: "o mundo dormiu cristão e, surpreso, acordou ariano", ou seja, rapidamente todo o mundo oriental aderiu ao arianismo. No lado ocidental, porém, cujo imperador era cristão, a fé trinitária foi mantida. A política exercia um influência negativa na Igreja, pois ao mesmo tempo em que os imperadores davam ao cristianismo a possibilidade de crescer, uma certa ingerência começou a aparecer.

A Igreja, por sua vez, demonstrou ter bastante personalidade e fidelidade a Nosso Senhor Jesus Cristo para, mesmo nas adversidades, manter-se firme na fé apostólico. E essa fidelidade será o tema das próximas aulas.

 

   Fonte: padrepauloricardo.org/aulas/o-edito-de-milao-e-a-heresia-ariana

—————

Voltar