5. Carlos, o grande

5. Carlos, o grande

Os esforços de Carlos Magno valeram-lhe, ainda por parte de seus contemporâneos, o título de “pai da Europa”. Após a sua atuação política, de fato, o Ocidente nunca mais seria o mesmo. Descubra, nesta aula de História da Igreja Medieval, quais foram, afinal, as contribuições deste “guerreiro quase inculto” para a história da Igreja e para a nossa civilização.

 

Em 768, após a morte de Pepino, o Breve, o reino franco foi dividido entre os seus filhos, Carlomano e Carlos. Com o falecimento prematuro do primeiro, em 771, todo o território franco ficou sob o império de Carlos (742-814), que se sobressaiu como um grande homem, merecendo o título de “magno” e de “pater Europae” (pai da Europa), dado por seus próprios contemporâneos, como lembrou o Papa São João Paulo II [1].
 
Logo no começo de seu reinado, Carlos Magno entabula uma relação de proximidade com o Papa Adriano I, fixando uma aliança política e espiritual em comum. “O gênio deste homem e a grandeza do seu caráter – escreve Daniel-Rops – mostram-se com mais clareza exatamente no fato de este guerreiro quase inculto ter compreendido a importância da obra civilizacional, e de se ter consagrado a ela pessoalmente” [2]. Olhando para os escombros do Império Romano, Carlos enxergou a importância de edificar uma cultura, muito além da simples liderança dos francos. Por isso, ele enviou emissários aos quatro cantos da Europa e, em sua “Escola palatina”, congregou inúmeros sábios, a fim de educar a sua família e a nobreza da época nas linhas da sabedoria antiga. Os seus múltiplos esforços foram consagrados sob o nome de “renascimento carolíngio”:
 
“De uma maneira ainda modesta, a Renascença carolíngia foi fecunda, fornecendo instrumentos de trabalho à cultura intelectual. A escrita foi transformada: ao invés das ilegíveis cursivas merovíngias, apareceu – talvez inicialmente em Corbia – a minúscula carolíngia, bela e nítida, que Alcuíno e os monges de Tours aperfeiçoaram e popularizaram por toda a parte. A língua latina – muito abastardada na França e na Itália, onde, continuando a ser língua viva, fora contaminada pelo linguajar bárbaro – foi muito melhorada pelos monges anglo-saxões, notadamente por Alcuíno, entre os quais se conservava como língua culta. As obras literárias clássicas, negligenciadas durante muito tempo, recuperaram o seu lugar de honra, mesmo entre aqueles para quem só contava a ‘divina sapiência’: voltaram-se a estudar Virgílio e os grandes autores, passou a haver certa familiaridade – embora num estreito espírito escolástico – com Boécio, Cassiodoro e Beda o Venerável, e a obra em que Marciano Capella compilara o Sonho de Cipião e as Metamorfoses de Ovídio desempenhou o papel de um verdadeiro manual pedagógico.” [3]
Durante o seu reinado, portanto, a cultura greco-romana e o tesouro dos ensinamentos dos Santos Padres floresceram como nunca antes. Para ler os manuscritos da Antiguidade, Carlos chegou a dominar a fala e a leitura da língua latina – na qual, porém, não obteve sucesso em escrever [4]. Foi sob o seu governo que os monges copistas começaram a incansável obra de preservação da cultura antiga, legando às gerações futuras os escritos de Cícero, Tito Lívio e outros nomes célebres. Da data anterior a Carlos Magno, de fato, pouquíssimos livros sobreviveram, sendo praticamente todos de conteúdo cristão. É a partir dele que os escritores substituem o papiro pelo pergaminho e este, por sua vez, pelos códices – quando as letras começam a ser gravadas em blocos de madeira. É de tal monta o crescimento intelectual que se experimenta nessa época que o mosteiro de Reichenau, que, antes de Carlos, continha em torno de cinquenta livros, passa a ter, depois, uma biblioteca com mais de mil obras.
 
Juntamente com o Papa, Carlos Magno também empreende uma importante reforma na educação e disciplina do clero, que se encontram bastante prejudicadas pelas invasões bárbaras e pela degradação dos costumes. “O clero secular foi objeto de cuidados de que até então nunca se beneficiara: foram-lhe exigidos não só costumes puros, como também um mínimo de conhecimentos. O bispo ou o seu delegado tinha obrigação de investigar periodicamente, por meio de exames orais, se os padres tinham noções suficientes de latim, de dogma e de liturgia. Uma lei obrigou os curas a pregar em língua vernácula todos os domingos.” [5]. A ação de Carlos também é determinante para o desenvolvimento da liturgia romana. As orações da Missa, por exemplo, que são rezadas de mãos juntas, certamente têm sua origem na prática da corte de Carlos Magno, bem como as orações chamadas “apologéticas”.
 
Para dar cabo a tudo isso, Carlos, obviamente, não age sozinho. Com ele, ergue-se, por exemplo, o bem-aventurado Alcuíno (735-804), um monge anglo-saxão e diretor da “escola catedral” de Iorque que, nos passos de São Beda, o Venerável, oferece uma sólida contribuição teológica e espiritual à obra desenvolvida por Carlos Magno. Além de ajudar a resolver problemas disciplinares dos bispos da Espanha, Alcuíno também auxilia na condenação da heresia do adopcionismo – que afirmava ser Cristo o “filho adotivo” de Deus –, durante o Concílio de Frankfurt, em 794.
 
Com a morte de Adriano I, em 795, é eleito o Papa São Leão III. Como, apesar de romano, Leão “não descendia de uma linhagem ilustre como o seu predecessor”, apressou-se um “golpe de Estado” contra o Sumo Pontífice:
 
“No dia das Ladainhas maiores de 799, quando cavalgava à frente da procissão conforme o antigo costume, Leão III foi assaltado, derrubado da sua montaria, moído a pancadas e despojado das vestes pontifícias; por um milagre, não lhe cortaram a língua nem lhe vazaram os olhos, à maneira bizantina. Acusado de toda a espécie de vícios e crimes, foi preso num convento à espera de ser ‘julgado’. Felizmente para ele, conseguiu evadir-se com a ajuda de uma corda e chegou até Spoleto, onde pôde tratar as feridas, e em seguida correu a Paderborn, ao encontro do rei Carlos, para pedir-lhe que o recolocasse no trono pontifício. O rei abraçou-o chorando e designou-lhe uma escolta de soldados e de altos funcionários que o acompanhariam a Roma e o ajudariam a reinstalar-se no trono pontifício.” [6]
Diante da pretensão de Carlos de emitir um juízo acerca da situação do Papa, o beato Alcuíno alertou-o: “Prima Sedes a nemine iudicatur – A Santa Sé não pode ser julgada por ninguém”. Mesmo assim, Leão III foi obrigado a prestar um juramento ao rei franco, negando as acusações de seus inimigos e confirmando a sua retidão moral. Nesse tempo, firmou-se uma relação muito íntima entre o papado e Carlos Magno, a ponto de o Sumo Pontífice devotar-lhe um amor declarado, que culminou com a sua coroação, no Natal de 800, como Imperador Romano.
 
É importante ressaltar que, com a queda do Império Romano do Ocidente, em 476, a sede do governo romano se encontrava em Constantinopla. A coroação de Carlos Magno como chefe de todo o Império, portanto, acirrou ainda mais as relações entre Roma e o Oriente, como se verá na próxima aula. Apesar de essa realidade durar pouco tempo – com a divisão dos territórios entre os filhos de Carlos e a invasão dos vikings, o Império se dissolverá mais uma vez –, historicamente, terá uma grande repercussão, especialmente quando a unidade se reestabelecer por meio do Sacro Império Romano Germânico.
 
Referências
 
  1. Cf. Papa João Paulo II, Discurso durante o conferimento do prémio internacional “Carlos Magno”, 24 de março de 2004, n. 2
  2. Henri Daniel-Rops. A Igreja dos tempos bárbaros. Quadrante: São Paulo, 1991, p. 428
  3. Henri Daniel-Rops. A Igreja dos tempos bárbaros. Quadrante: São Paulo, 1991, p. 430
  4. Cf. Einhardi Vita Karoli Magni, 25
  5. Henri Daniel-Rops. A Igreja dos tempos bárbaros. Quadrante: São Paulo, 1991,p. 423
  6. Henri Daniel-Rops. A Igreja dos tempos bárbaros. Quadrante: São Paulo, 1991,p. 404-405