4. Liturgia da Igreja: quem e como celebrar?

4. Liturgia da Igreja: quem e como celebrar?

A celebração de todos os sacramentos está ligada ao mistério da Páscoa, que é também a chave de leitura da vida espiritual de todo cristão. Esta aula pretende responder à questão: quem e como celebrar a liturgia da Igreja? 

 

A aula de hoje contemplará o Capítulo II, da seção "A Economia Sacramental", cujo título é "A celebração sacramental no mistério pascal". Interessante notar, logo de início, que a celebração dos sacramentos, de todos eles, está ligada ao mistério da Páscoa, que é também a chave de leitura da vida espiritual de todo cristão.
 
O artigo I apresenta algumas perguntas que serão respondidas ao longo do texto, são elas: quem celebra? como celebrar? quando celebrar? onde celebrar? Esta aula, no entanto, se aterá às duas primeiras.
 
Quem celebra? O Catecismo começa explicando que "a liturgia é 'ação' do Cristo todo ("Christus totus")(1136). Originariamente, o sentido de "liturgia" é de um serviço prestado ao povo e quem o presta é o sacerdote. No entanto, para além do sentido etimológico, há que se considerar o teológico, no qual a liturgia é o culto oficial da Igreja, portanto, ela é da Igreja como um todo e não só da Igreja hierárquica, dos ordenados.
 
Deste modo, falar em liturgia é abranger tanto a que ocorre na terra, quanto a que se realiza no céu e que é descrita no Livro do Apocalipse. O culto terrestre, embora muito limitado, espelha o culto do céu. É o mesmo corpo. Os santos e os anjos louvam a Deus no céu e o mesmo acontece aqui na terra, com uma diferença: aqui na terra, a liturgia se dá através dos sacramentos (muito embora existam outras celebrações litúrgicas não sacramentais, como p. ex., a Liturgia das Horas), porém, todas as celebrações litúrgicas estão ordenadas aos sacramentos e sobretudo ao da Eucaristia, a Santa Missa. De tal forma que, celebrando a liturgia aqui na Terra, a Igreja está unida à liturgia celeste, não somente porque é imagem, mas pelo fato de que, ao celebrar, é Cristo que celebra.
 
Um sacerdote aqui na Terra, ao oferecer o sacrifício da Santa Missa, tendo como sacerdote invisível o Cristo, está também unindo a si à Igreja do mundo inteiro e à Igreja celeste. Quando em todas as missas, após o Prefácio, o padre lembra os coros dos anjos ("dizendo a uma só voz"), ele está recordando o fato de que "a uma só voz" se está louvando a Deus, seja no céu, seja na terra. É a mesma liturgia. É por isso que mesmo um padre celebrando sozinho, em um altar lateral, está também com o Christus totus, que é a Igreja. O Catecismo ensina:
 
"Recapitulados" em Cristo, participam do serviço do louvor a Deus e da realização de seu desígnio: as potências celestes, a criação inteira (os quatro viventes), os servidores da antiga e da nova aliança (os vinte e quatro anciãos), o novo povo de Deus (os cento e quarenta e quatro mil), em especial os mártires "imolados por causa da Palavra de Deus" e a Santa Mãe de Deus (a mulher; a Esposa do Cordeiro), e finalmente "uma multidão imensa, impossível de se enumerar, de toda nação, raça, povo e língua". (1138)
O conceito de recapitulação, presente na Sagrada Escritura, possibilita a visão clara da dinâmica da celebração litúrgica: é o Corpo que está todo voltado para Cristo-Cabeça, ou seja, recapitulado Nele. Assim, o celebrante da liturgia celeste é o próprio Cristo.
 
Já o celebrante da liturgia terrestre, diz o Catecismo, "é toda a comunidade, o corpo de Cristo unido à sua Cabeça, que celebra". (1140) Não se trata, é claro, de um viés protestante, que tenderia a olhar para esta afirmação e imaginar que está sendo posta de lado a hierarquia. Não. Trata-se de um olhar do geral para o particular e agora um olhar para a Igreja peregrina na realidade da assembleia litúrgica.
 
A comunidade é formada pelos "batizados, os quais pela regeneração e unção do Espírito Santo, são consagrados para serem casa espiritual e sacerdócio santo e para poderem oferecer um sacrifício espiritual toda atividade humana do cristão." (1141)
 
Embora a assembleia seja formada pelos batizados, como visto acima, nem todos possuem a mesma função. "Certos membros são chamados por Deus, na e pela Igreja, a um serviço especial na comunidade." Na sequência, o Catecismo diz que esses membros são "servidores escolhidos e consagrados pelo sacramento da ordem, por meio do qual o Espírito Santo os torna aptos a agir na pessoa de Cristo-Cabeça para o serviço da Igreja." (1142)
 
Assim, quando um padre celebra a missa ele é o sacerdote oferente do sacrifício de Cristo na Cruz, no Calvário, mas unido a ele, a assembleia litúrgica se oferece. É o mesmo sacrifício pois é o único corpo de Cristo que se oferece, mas são diferentes em sua forma de oferecer. O padre o faz sacramentalmente, de maneira incruenta, enquanto os fiéis se unem a ele, se oferecendo com o Cristo. Toda comunidade celebra, cada um da sua forma.
 
Além do ministério ordenado, existem outros ministérios que participam de forma menos direta do oferecimento do sacrifício da missa, são os diáconos, os acólitos, os leitores, etc., que oferecem, também à sua maneira sua contribuição ao sacrifício. (cfr. 1143)
 
Como celebrar? Existe uma realidade antropológica por detrás dos sacramentos. Cristo, ao escolher os sinais instituídos por Ele, estava respeitando verdades antropológicas concretas. São "sinais do mundo dos homens", ensina o Catecismo, que continua:
 
Sendo o homem um ser ao mesmo tempo corporal e espiritual, exprime e percebe as realidades espirituais por meio de sinais e de símbolos materiais. Como ser social, o homem precisa de sinais e de símbolos para comunicar-se com os outros, pela linguagem, por gestos, por ações. Vale o mesmo para sua relação com Deus. (1146)
 
Concretamente, os sinais pelos quais Deus se comunica com o homem estão presentes na "criação visível". Ensina o Catecismo que "o cosmo material apresenta-se à inteligência do homem para que este leia nele os vestígios de seu criador." (1147) Os místicos chamam este estado de "contemplação física" e ocorre antes da contemplação dos mistérios salvíficos, ao enxergar Deus na criação.
 
Foi justamente das coisas naturais e criadas que Jesus tirou os sacramentos e a Igreja os sacramentais. A valorização da verdade dos símbolos litúrgicos é muito importante, por isso, muitas coisas devem ser evitadas justamente por não se serem verdadeiras. Por exemplo, a substituição de velas comuns por velas virtuais ou elétricas, flores naturais por flores de plástico, etc. Tais comutações se distanciam do que é a verdade antropológica básica.
 
Não existe somente os símbolos das criaturas, mas também os da "vida social: lavar e ungir, partir o pão e partilhar o cálice podem exprimir a presença santificante de Deus e a gratidão do homem diante de seu criador". (1148)
 
A Igreja atesta essa verdade antropológica que permeia os sacramentos, muito embora isso não signifique, de maneira nenhuma, uma apologia ou referência ao naturalismo, ou sequer comparar os ritos católicos com os ritos de outras religiões, equiparando-os. Não se trata disso. Existe uma verdade dos homens, que está na própria estrutura do ser humano, do simbólico, do ritualistíco, no próprio ser humano, que foi tomado pelo Cristo Senhor dentro da obra sacramental e pela Igreja para os seus sacramentais. Assim, quando Deus realiza a obra da graça, Ele se apropria dos símbolos que estão na natureza.
 
Além da realidade antropológica e das várias religiões, existe uma realidade anterior do Antigo Testamento. A liturgia da Igreja passou por uma longa preparação. Portanto, quando Jesus diz: "Não penseis que vim abolir a Lei e os Profetas. Não vim para abolir, mas para dar-lhes pleno cumprimento" (Mt 5,17) é evidente que todas as prescrições litúrgicas do Antigo Testamento, o livro do Levítico, as prescriçoes rituais para os levitas, as medidas do templo, como oferecer o sacrifício, toda essa realidade foi uma preparação.
 
Alguns abominam que se lembre a liturgia do Antigo Testamento, aliás, uma das críticas feitas à liturgia anterior ao CVII é de que era muito ligada a certos símbolos vétero-testamentárias, portanto, ultrapassadas. Não. Toda a simbologia nasceu no Antigo Testamento. E "a Igreja vê nesses sinais uma prefiguração dos sinais da Nova Aliança". (1150)
 
Jesus se apropria desses sinais e símbolos para realizar curas ou sublinhar suas pregações. Com isso, Ele "dá um sentido novo aos fatos e aos sinais da Antiga Aliança, particularmente ao Êxodo e à Páscoa, por ser ele mesmo o sentido de todos esses sinais." (1151)
 
De forma resumida, o Catecismo fecha esse ponto falando sobre os sinais sacramentais:
 
Desde Pentecostes, é por meio dos sinais sacramentais de sua Igreja que o Espírito Santo realiza a santificação. Os sacramentos da Igreja não abolem, antes purificam e integram toda a riqueza dos sinais e dos símbolos do cosmos e da vida social. Além disso, realizam os tipois e as figuras da antiga aliança, significam e realizam a salvação operada por Cristo, e prefiguram e antecipam a glória do céu. (1152)
No Antigo Testamento, a Palavra fazia parte do chamado culto sinagogal, de tal forma que, na época de Jesus, havia dois cultos coordenados entre si, que se completavam mutuamente, mas que às vezes, estavam em tensão conflitiva: o culto do Templo de Jerusalém, onde somente ali se realizavam os sacramentos e acontecia a liturgia realizada pelos saduceus. No entanto, desenvolve-se no tempo do pós-exílio da Babilônia, o culto sinagogal, em que as pessoas se reuniam para ler a Torá (a Lei). Inicialmente uma simples leitura, mas desde o início parece estar marcado por uma certa "liturgia". Tais realidades unem-se na liturgia da Igreja, que terá uma "liturgia da Palavra" e uma "liturgia Eucarística", ou seja, palavra e gesto que se unem, o que é típico da vida litúrgica cristã católica.
 
Também os cantos e a música são partes importantes nas celebrações litúrgicas. E o Catecismo ensina a respeito deles:
 
O canto e a música desempenham sua função de sinais de maneira tanto mais significativa por estarem intimamente ligados à ação litúrgica, segundo três critérios principais: a beleza expressiva da oração, a participação unânime da assembleia nos momentos previstos e o caráter solene da celebração. Participam assim da finalidade das palavras e das ações litúrgicas: a glória de Deus e a santificação dos fiéis. (1157)
Finalmente, quanto às santas imagens, é importante ressaltar que elas era proibidas no Antigo Testamento quando ainda o Salvador não tinha um "rosto", porém, "é a encarnação do Filho de Deus que inaugura uma nova "economia" das imagens." (1159). O Catecismo sintetiza:
 
Todos os sinais da celebração litúrgica são relativos a Cristo: são-no também as imagens sacras da santa mãe de Deus e dos anjos. Significam o Cristo que é glorificado neles. Manifestam a "nuvem de testemunhas" que continuam a participar da salvação do mundo e às quais estamos unidos, sobretudo na celebração sacramental. Por meio de seus ícones, revela-se à nossa fé o homem criado "à imagem de Deus" e transfigurado "à sua semelhança", assim como os anjos, também recapitulados em Cristo." (1161)
Na próxima aula será estudado o "quando" e o "onde" celebrar.