4. As expansões islâmicas e a defesa da Europa

4. As expansões islâmicas e a defesa da Europa

Em pouco menos de um século, os muçulmanos fincaram bandeira na Europa e quase dominaram todo o continente, não fosse a genialidade política e militar de um homem: Carlos Martel. Nesta aula de história da Igreja, conheça a história de Maomé e descubra como o exército de um “mordomo do palácio” derrubou as tropas islâmicas e conteve o avanço militar dos “cavaleiros de Alá”.

 

Até o século VI, a região da Península Arábica era habitada predominantemente por tribos nômades. Eram poucas as comunidades que sobreviviam de agricultura e não havia nada que unisse social ou politicamente esses grupos.
 
Nasce, então, em 570, na cidade de Meca – região da atual Arábia Saudita –, o fundador da religião islâmica, Maomé (Muhammad, em árabe). Órfão de pai e de mãe desde muito cedo, o menino é educado pelos beduínos e, depois, pelos próprios parentes. Com 25 anos, casa-se com uma viúva, de nome Cadija, cuja visão religiosa provavelmente exerceu forte influência sobre ele [1]. Cadija era ebionita; fazia parte de uma seita que aceitava a Torá e reconhecia Jesus como um profeta, mas não como Deus.
 
Em 610, durante um de seus retiros espirituais, Maomé começa a receber supostas revelações do Arcanjo Gabriel, as quais ele anota no Alcorão (Al-Qur’an, em árabe). O livro sagrado da religião islâmica, dividido em suratas, é organizado decrescentemente, de acordo com a sua extensão, e não serve como fonte para conhecer a vida de Maomé, sendo necessário recorrer a outras tradições islâmicas – como as Hadith – para descobrir a sua biografia.
 
O primeiro povo a receber o anúncio da nova religião de Maomé são os coraixitas. À época, eles eram guardiões da Kaaba, um santuário que, além de conter milhares de divindades, abriga uma “pedra negra”, supostamente sagrada [2]. É a essa tribo que o profeta anuncia primeiro a sua crença monoteísta. Suas pregações, no entanto, não obtêm muito sucesso e ele é obrigado a fugir para Yathrib – hoje, Medina –, em 622. Neste ano, que marca o início do calendário islâmico, Maomé decide mudar sua estratégia: ao invés de conseguir prosélitos pacificamente, o profeta começa a implantar o Islão por meio de expedições políticas e militares – leia-se: pelo fio da espada –, de modo que, ainda durante a vida do profeta, toda a Península Arábica foi colocada sob o seu domínio.
 
A expansão da religião muçulmana continua mesmo após a morte do profeta e os seus sucessores – os califas – tomam o Império Persa, a Terra Santa, o norte da África e chegam, em 711, à Península Ibérica. À luz desses fatos, está bem claro que o crescimento religioso do Islão começou ligado diretamente a guerras e conquistas militares. Se é possível dizer que o terrorismo não é a expressão mais legítima do islamismo, dizer que ele sempre foi uma “religião da paz”, definitivamente, não corresponde à realidade histórica. É neste contexto, a propósito, que se inserem as Cruzadas, que muitos professores de história apresentam como uma amostra de intolerância e de violência da Igreja medieval, quando, na verdade, se trataram de guerras de defesa contra as agressivas invasões islâmicas.
 
O fato é que, quando os muçulmanos colocam o pé na Europa, encontram um clima muito propício para a sua conquista. O continente europeu encontrava-se dividido entre várias tribos visigóticas e governado por reis mais preocupados em lutar entre si que em organizar-se militarmente contra o perigo islâmico. “A tradicional imagens dos ‘reis fainéants’, que se deslocavam de cidade em cidade estendidos nos seus pesados carros de bois e que passavam a vida na ociosidade e na devassidão, corresponde à mais estrita realidade” da época [3].
 
Ao lado dessas figuras decadentes, porém, surge a figura do “prefeito do palácio”, “que administrava os domínios pessoais do soberano em seu nome” e acabava por transformar-se em “uma espécie de primeiro ministro” [4]. Um desses “mordomos”, de nome Carlos Martel, teve a brilhante ideia de formar um exército profissional e estável para conter o avanço islâmico. Para tanto, Martel confiscou terras e bens eclesiásticos, atitude sem dúvida errada, mas que se revelou, depois, providencial.
 
De fato, em 725, as cavalarias de Alá já se encontravam na Gália. Na região da Aquitânia, os francos foram derrotados de modo tão clamoroso que, segundo os cronistas da época, “só Deus sabia o número dos mortos”. Em 732, as tropas muçulmanas, lideradas por Abd-er-Rahman, avançaram rumo à cidade de Tours, deparando-se, no meio do caminho, com o exército de Carlos Martel, na famosa Batalha de Poitiers:
 
“Os exércitos, bem diferentes um do outro – os francos, pesadamente equipados, usavam cotas de malha e capacetes de metal; os muçulmanos, montados em pequenos e fogosos cavalos, conduziam o ataque como um turbilhão –, e enfrentaram-se nas colinas do Poitou. Durante sete dias, Ocidente e Oriente estudaram-se mutuamente. Os muçulmanos, inquietos, não ousavam abordar aquela ilha blindada de ferro, mas por fim lançaram-se. As suas cargas loucas, em pleno galope, chocaram-se contra os batalhões quadrados dos francos. Apoiados uns nos outros, como um mar solidificado, os soldados de Carlos aguentaram estoicamente a saraivada de flechas, e todo muçulmano que passasse ao alcance das suas alabardas, dos seus gládios, das suas maças de armas, estava perdido. Ao cair da noite, o combate se desfez. Abd-er-Rahman caíra, morto numa carga cerrada.”
 
“As perdas do Islão foram pesadas, e o avanço em direção ao Poitou estava barrado. Quando rompeu o novo dia, os espias de Carlos informaram que o campo muçulmano, com as suas tendas alinhadas, continuava no mesmo lugar, e pensou-se que a batalha ia recomeçar. Mas não: na calada da noite, a grande velocidade, o Oriente tinha fugido...” [5]
É evidente que, mesmo após essa derrota, os árabes não pararam. Foi o filho de Carlos Martel, Pepino, o Breve, também “prefeito do palácio”, quem conseguiu finalmente tirá-los do território franco. Então, em 751, após recorrer à autoridade do Papa Zacarias para legitimar o seu poder – afinal, perguntava ao Santo Padre, “convém chamar rei àquele que tem o título do poder, ou àquele que o possui na realidade?” [6] –, Pepino é coroado rei dos francos por São Bonifácio de Mogúncia, dando início a uma nova dinastia real: os carolíngios. É nesta linhagem que nascerá o grande Carlos Magno, cujo empenho e perspicácia mudarão os destinos da Europa para sempre. Mas, este é um tema para a próxima aula.
 
Olhando para esse passado de guerras, no qual os cristãos tiveram que recorrer às armas para defender a Europa, percebe-se que a história da Igreja não pode ser separada dos eventos políticos e militares tão comuns na história da humanidade. Embora a expansão da fé cristã não deva dar-se pela espada, mas pela persuasão racional, é importante que o Estado garanta à sociedade certa paz e estabilidade, defendendo-a dos perigos que ameaçam as suas fronteiras e tentam pôr abaixo seus valores e sua cultura. Foi o que fizeram as autoridades políticas desse tempo, tentando estabelecer um pouco de ordem, a fim de garantir à Igreja a possibilidade de evangelizar e construir a civilização ocidental.
 
Referências
 
  1. Diz-se “provavelmente” porque muitas informações que se têm a respeito de Maomé não passam de hipótese histórica: grande parte vem de biografias e tradições muito posteriores à vida do profeta, cerca de mais de 200 anos após a sua morte.
  2. Posteriormente, a Kaaba será tomada pelos muçulmanos e incorporada à mesquita de Al-Haram, o lugar mais sagrado da religião islâmica.
  3. Henri Daniel-Rops. A Igreja dos tempos bárbaros. Quadrante: São Paulo, 1991. p. 387
  4. Ibidem, p. 388
  5. Ibidem, p. 391
  6. Ibidem, p. 393