São Leão Magno e a teologia do poder pontifício

20/09/2014 10:07
 
São Leão Magno e a teologia do poder pontifício
 
De todos os teólogos do primeiro milênio, São Leão Magno é o que com mais clareza elabora e ensina, como verdadeiro mestre da fé, em que consiste o poder pontifício. A partir de seus escritos, fica evidente como, desde o princípio, a Igreja é católica e como a consciência sobre a autoridade do papado foi se cristalizando ainda nos primeiros séculos da era cristã.
 
Leão, nascido na região da Toscana, em 400, já era reconhecido antes mesmo de sua eleição ao sólio de Pedro. Enquanto diácono da Igreja de Roma, possuía fama e capacidade extraordinárias, atestadas, por exemplo, por João Cassiano, monge de Marselha, e pelo patriarca São Cirilo de Alexandria. Após a morte de Sisto III, em 440, tal era o seu prestígio que foi aclamado pelo povo e pelo clero como 44º sucessor de São Pedro.
 
Tão logo começou o seu pontificado, iniciou-se um incansável combate aos erros que ameaçavam a integridade da fé católica: como Santo Agostinho, Leão lutou com vigor contra as heresias do pelagianismo e do maniqueísmo, não permitindo que o seu rebanho fosse dizimado pela sanha dos lobos.
 
Surgiu, então, no horizonte o monofisismo. Quando o principal expoente dessa heresia, o monge Eutiques, decidiu escrever ao Papa, pedindo que o defendesse, já estava consolidada a fé no primado de Roma. Quando, por exemplo, São Clemente escreve à comunidade de Corinto, ainda no primeiro século, intervindo aí com a autoridade de São Pedro [1]; e quando Santo Inácio de Antioquia escreve à Roma, referindo-se a ela como a que “preside à caridade na observância da lei de Cristo e que leva o nome do Pai” [2], também se atesta claramente a supremacia do poder do bispo de Roma, que os cristãos sabiam ter fundamento na sucessão apostólica.
 
São Leão Magno foi defensor assíduo dessa supremacia. Em uma carta ao bispo Anastásio de Tessália, datada de 446, ele escreve:
 
“De fato, também entre os beatíssimos Apóstolos, na igualdade de honra, houve certa diferença de poder; e se bem que a eleição fosse comum a todos, a um somente foi dado ter a primazia sobre os outros. De tal modelo surgiu também a diferenciação dos bispos e, com notável ordem, providenciou-se que nem todos assumissem tudo, mas que em cada província houvesse alguns cujo juízo entre os irmãos fosse tido como prioritário; e que, por sua vez, alguns constituídos nas cidades maiores assumissem uma responsabilidade mais ampla e através deles confluísse para a única Sé de Pedro o cuidado da Igreja universal e nada em nenhum lugar ficasse separado de sua cabeça.” [3]
Fica bem claro que, já no século V, se reconhecia o Papa como “cabeça” do colégio episcopal. É que, embora não estivesse plenamente desenvolvida a fé na infalibilidade pontifícia, essa não é a única coisa que se deve crer a respeito do Papa. A constituição dogmática que define o dogma da infalibilidade papal – a Pastor Aeternus, do Concílio Vaticano I – faz questão de lembrar, por exemplo: que a instituição do primado de São Pedro é divina (primeiro capítulo); que o primado de Pedro se perpetua em seus sucessores, ao longo dos séculos (segundo capítulo); e que a natureza do primado do Papa não é de mera inspeção, mas de verdadeira jurisdição (terceiro capítulo). Só no quarto capítulo se faz a definição solene do dogma:
 
“O Romano Pontífice, quando fala ex cathedra – isto é, quando, no desempenho do múnus de pastor e doutor de todos os cristãos, define com sua suprema autoridade apostólica que determinada doutrina referente à fé e à moral deve ser sustentada por toda a Igreja –, em virtude da assistência divina prometida a ele na pessoa do bem-aventurado Pedro, goza daquela infalibilidade com a qual o Redentor quis estivesse munida a sua Igreja quando deve definir alguma doutrina referente à fé e aos costumes; e que, portanto, tais declarações do Romano Pontífice são, por si mesmas, não apenas em virtude do consenso da Igreja, irreformáveis.” [4]
Portanto, a fé católica no Papa não diz respeito apenas às coisas infalíveis, mas também à sua atuação ordinária, do dia a dia.
 
Isso não significa dizer que o Papa é “impecável” e que todos os seus atos, mesmo os pessoais, sejam sacrossantos. Quando expõe a sua teologia do poder pontifício, São Leão Magno tem plena consciência de que muitos de seus predecessores pecaram. Durante a controvérsia ariana, por exemplo, o Papa Libério – que sucedeu 35 papas santos –, além de assinar vários concílios heréticos, condenou Santo Atanásio. Pouco depois, em 417, enquanto Santo Agostinho empreendia grandes esforços para derrotar a heresia pelagiana, o Papa Zósimo interveio em defesa do monge Pelágio, em quem via – erroneamente – grande virtude e piedade. Então, é sabido que homens indignos já ocuparam o trono de Pedro. No entanto, nem isso abala a fé católica no papado, que não é em uma pessoa, mas em uma instituição.
 
Hoje, há uma tendência a sublinhar exageradamente os aspectos pessoais do Santo Padre, correndo-se o risco de esquecer que o amor a ele devido, mais do que por alguma característica particular sua, reside no fato mesmo de ele ser sucessor do Apóstolo Pedro.
 
Em suma, o Papa é infalível quando fala ex cathedra. Quando não fala ex cathedra, ele deve ser obedecido. E cabe-nos obedecê-lo não por causa de um carisma que lhe é próprio, mas pela função que exerce a frente da Igreja. Além disso, quando um Papa erra, a praxe na Igreja é que apenas outro Papa o deve julgar, como São Bonifácio I julgou Zósimo, condenando o pelagianismo. É a sucessão apostólica – a instituição do pontificado – o que garante a fé da Igreja, não uma pessoa determinada. Com razão, pois, o Papa Leão, em sua humildade pessoal, não deixava que ninguém humilhasse a sua função. “Não deveis medir o valor da herança pela indignidade do herdeiro”, dizia ele [5].
 
Quando escreveu o famoso “tomo a Flaviano”, endereçado ao patriarca de Constantinopla, contra o monofisismo [6], São Leão foi aclamado pelos padres do Concílio de Calcedônia, que ouviram em suas palavras a voz do bem-aventurado Pedro. E quando, por razões políticas, esse mesmo Concílio acabou aprovando, em sua definição, o cânon 28, que equiparava a diocese de Constantinopla à cidade de Roma, Leão protestou veementemente, dizendo que essa afirmação lesava os direitos pontifícios. À época – mais uma prova da força da autoridade papal –, ninguém contestou que ele tivesse o poder de fazer isso.
 
A importância de Leão – que ao ver o Império Romano se esfacelando, chegou a defender a Cidade Eterna do domínio de Átila, o rei dos hunos – está na grande herança que deixou para a Igreja e para o próprio mundo. A humanidade tinha, agora, na figura do Papa, uma coluna mestra, que a permitia navegar com segurança nos mares tempestuosos da história.
 
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Referências
 
  1. Cf. Carta “Δια τας αιφνιδιους”, aos Coríntios, ca. 96: DS 102
  2. Santo Inácio de Antioquia, Epístola aos Romanos, 1
  3. Carta “Quanta fraternitati” ao bispo Anastásio de Tessália, ano 446: DS 282
  4. Concílio Vaticano I, 4ª sessão, 18 jul. 1870: primeira Constituição Dogmática “Pastor aeternus” sobre a Igreja de Cristo: DS 3074
  5. Henri Daniel-Rops. A Igreja dos tempos bárbaros. Quadrante: São Paulo, 1991. p. 110
  6. Carta “Lectis dilectionis tuae”, ao bispo Flaviano de Constantinopla (“Tomus Leonis”), 13 jun. 449: DS 290-295
 

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