12. São João Crisóstomo e o Império Bizantino

15/03/2014 14:58

Antes de abordar as controvérsias cristológicas do século quinto, recordar a figura do grande bispo-monge São João Crisóstomo é um grande refrigério.

 

A aula passada contemplou alguns aspectos da vida monástica. Nesta, se pretende caminhar em direção ao 5º século, no qual ocorreram as grandes controvérsias cristológicas, que culminaram nos concílios de Éfeso, em 431 e Calcedônia, em 451.
 
Para compreender a transição entre uma e outra época é preciso volver o olhar para algo que estava apenas nascendo: o Império Bizantino. Oficialmente, naquele tempo não se chamava “Império Bizantino”, posto que esse termo foi criado pelos historiadores para descrever os mil anos em que o Império Romano do Oriente assumiu algumas características próprias.
 
Quando o Império Romano era centrado em Roma, possuía características mais jurídicas, racionais, práticas e militares. A mentalidade romana era muito simples, reta, prática, sem grandes paixões. A diferença entre o romano do ocidente e do oriente é visível até hoje por meio da liturgia. O cânon romano é mais seco e preciso, já o oriental é mais poético, escrito para fazer surgir devoção, mais emocional.
 
O espírito bizantino caracteriza-se por uma mistura de três ingredientes: 1. a mentalidade romana que influenciou e entrou no Império Bizantino; 2. o helenismo, que se compõe da chamada cultura helênica (originária da Grécia, com sua filosofia; com a meditação acerca das verdades, toda a cultura platônica, neoplatônica, aristotélica, etc.) e da realidade oriental. Lembrando que a fusão entre ambas foi obra do Imperador Alexandre Magno, conforme já visto em aulas passadas; 3. a cultura oriental, que em si era bastante passional e propensa a uma divinização do imperador.
 
Este terceiro ingrediente impregnou-se no Império Romano, todavia, como já eram cristãos não mais se atribuíam o título de “deus”, mas apresentavam-se como “sagrados”. Portanto, ao juntar em si a alma grega com a alma oriental, o Imperador se colocava como chefe da Igreja. Nasceu, então, o “cesaropapismo”, ou seja, o imperador que se comporta como papa. O primeiro foi Constantino, mas se seguiram outros, a tal ponto que a política do Império Bizantino exercerá grande influência na vida eclesial. Muitos pensam que isso se deve ao cristianismo e à Igreja, mas na verdade, se deve muito mais àquela mistura encontrada no império bizantino.
 
Nesse cenário, surge a figura de São João Crisóstomo que pode fazer com primor a ponte entre a aula sobre a vida monástica e as controvérsias cristológicas e bizantinas que surgirão no século V. Ele foi monge e, além disso, entrou em uma série dessas polêmicas ocorridas na corte de Constantinopla, pois foi patriarca daquela cidade.
 
Constantinopla sediou um concílio em 381, no qual foi condenado pela segunda vez o arianismo e também os pneumatômacos, que negavam a divindade do Espírito Santo. Reinava na época o Imperador Arcádio, um governante fraco totalmente influenciado por sua esposa, a Imperatriz Eudóxia e o cônsul eunuco, chamado Eutrópio. Essa enigmática figura, que em sua juventude havia sido um efebo, ou seja, prestava serviços sexuais aos generais gregos. Com a velhice, foi alforriado e se tornou um eunuco no palácio, crescendo em influência, acabou conseguindo que o imperador Arcádio desposasse a sua pupila. Ela, por sua vez, não tinha uma passado honroso. Órfã de pai, meio bárbara, crescera na corte também prestando favores sexuais. Assim, os dois, Eutrópio e Eudóxia - governam o Império.
 
Diante desta situação, pretendem aplicar um golpe e levar para Constantinopla um bispo de prestígio, mas que pudesse ser influenciado por eles, para dar à cidade uma maior importância eclesiástica e eclesial, pois pretendia se apresentar ao mundo como a Nova Roma. Assim, mandam para Antioquia um embaixador, o qual acaba por sequestrar o padre João Crisóstomo, considerado a “joia” de Antioquia.
 
Ele havia sido monge no deserto durante muito tempo e, devido ao rigor de suas penitências, teve problemas de saúde que o obrigaram a retornar para a cidade, quando foi ordenado sacerdote. Tornou-se um grande pregador. Com a influência de sua santidade e a ousadia de sua palavra conseguiu tocar aquela cidade. Por exemplo, a cidade de Antioquia iria ser punida pelo Imperador por causa de uma série de arruaças, mas João convocou o povo para rezar, fazer penitências e pedir a clemência do Imperador, e de fato, conseguiu o perdão para a cidade. Isso fez com que a população o considerasse como o herói da cidade.
 
Quando o embaixador de Constantinopla chegou em Antioquia, convenceu o Bispo a entrar na carruagem para uma conversa mais reservada e simplesmente o raptou. Ora, se tão somente pedisse para que ele o acompanhasse para Antioquia não teria conseguido sucesso, pois João não queria ser bispo. E a população também permitiria sua mudança, assim, o sequestro foi a única alternativa.
 
João chega em Constantinopla e resiste o quanto pode, porém, desiste e é sagrado Bispo, Patriarca de Constantinopla. Contudo, para Eudóxia e Eutrópio, o feitiço virou contra o feiticeiro, ou seja, João começou a pregar e a ordenar o Império. Primeiro, pregou para os padres de Constantinopla, falando sobre a necessidade da vida ascética, de se vestirem como padres e não com as túnicas da moda. Além de falar, deu o exemplo, vivendo o que estava pregando. Em seguida, passou a pregar para os monges, reiterando a necessidade de voltarem às suas celas, a rezarem e a abandonarem os hábitos mundanos. Por fim, passou a pregar contra os hábitos imorais da corte. A gota d´água foi quando comparou a imperatriz Eudóxia com a rainha iníqua Jezabel, ganhou a inimizade da poderosa.
 
A partir disso, a Imperatriz se empenhou em acabar com João Crisóstomo, juntamente com Eutrópio. Para vergonha da cristandade, esse plano vingou com a cooperação de um homem de dentro da Igreja, um eclesiástico. Teófilo, patriarca de Alexandria, nutria um certo rancor de João, por ele ter sido escolhido como Patriarca de Constantinopla em detrimento de seu candidato.
 
Além disso, Teófilo estava perseguindo os monges abrigados no deserto de Nítria, alegando que, como tinham predileção pelos escritos de Orígenes, estavam cometendo vários erros teológicos. De fato, posteriormente, alguns escritos de Orígenes foram condenados em dois concílios, Niceia e Constantinopla. Assim, ele passou a perseguir os monges, os quais tiveram de abandonar suas celas e empreender fuga pelo deserto. Não contente, Teófilo mandou homens atrás deles e muitos foram maltratados, se perderam e até mesmo morreram pelo deserto. Até que uma caravana desses monges maltratados e maltrapilhos chegou em Constantinopla e pediu o auxilio de João Crisóstomo. O Patriarca os recebeu e os acolheu, repudiando a injustiça que estava sendo cometida contra eles.
 
Diante dessa postura de João Crisóstomo, Teófilo ficou ainda mais enraivecido e acabou por firmar um acordo com Eudóxia. Assim, mediante uma manobra destituiu João Crisóstomo do patriarcado e o mandou para o exílio. A cidade, porém, se revoltou e exigiu a sua volta. Fizeram manifestações e o governo não teve outra alternativa que não receber João Crisóstomo de volta.
 
A Imperatriz, porém, continuou a querer destruir João e novamente o mandou para o exílio, só que as pessoas passaram a ser atraídas por sua santidade, de modo que o local para onde foi mandado se tornou uma capital espiritual. Diante disso, ela novamente dá ordens para que o Patriarca fosse levado para um lugar ainda mais distante, no Cáucaso. Os soldados deram muitas com o pobre velho, com a intenção de que não suportasse a viagem e, de fato, não resistiu, morrendo no meio do caminho.
 
Portanto, o Império Bizantino foi pontuado pelo surgimento desses bispos-monges, grandes homens que conseguiram ter uma tal independência espiritual que comprovaram mais uma vez a estatura verdadeira da Igreja. No entanto, esse tempo não há que perdurar. No mais as vezes, o que mais se verá serão bispos subservientes, mais preocupados em agradar ao império e a à corte do que a Deus. Infelizmente, esta é a realidade constante da Igreja.
 
Todas as vezes que uma igreja local se afasta do Papa, pretendendo uma “independência” do poder papal, do imperialismo romano, acaba sucumbindo debaixo a bota do poder político. Na história da Igreja recente isso se mostrou bastante atual. Basta observar a Igreja Ortodoxa que, separada de Roma, não teve o menor escrúpulo em se unir a KGB. Na América Latina não foi diferente. E com isso, renasce o cesaropapismo, ou seja, de uma corte corrupta que quer conduzir a Igreja como um joguete para seus caprichos, estratégias, no seu caminho de corrupção e poder.
 
É preciso, pois, ter sempre em mente que o passado ilumina o presente porque a história é a mestra da vida.
 

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