A Inquisição (Parte 2)

25/03/2015 11:57
Quanto à pena de morte, reconhecida
pelo antigo Direito Romano, estava em vigor na jurisdição civil da Idade Média.
Sabe-se, porém, que as autoridades eclesiásticas eram contrárias à sua
aplicação em casos de lesa-religião. Contudo, após o surto do catarismo (séc.
XII), alguns canonistas começaram a julgá-la oportuna, apelando para o exemplo
do Imperador Justiniano, que no séc. VI a infligira aos maniqueus. Em 1199 o
Papa Inocêncio III dirigia-se aos magistrados de Viterbo nos seguintes termos:
 
“Conforme a lei civil, os
réus de lesa-majestade são punidos com a pena capital e seus bens são
confiscados. Com muito mais razão, portanto, aqueles que, desertando a fé,
ofendem a Jesus, o Filho do Senhor Deus, devem ser separados da comunhão cristã
e despojados de seus bens, pois muito mais grave é ofender a Majestade Divina
do que lesar a majestade humana” (epist. 2,1).
 
Como se vê, o Sumo Pontífice
com essas palavras desejava apenas justificar a excomunhão e a confiscação de
bens dos hereges; estabelecia, porém, uma comparação que daria ocasião a nova
praxe… O Imperador Frederico II soube deduzir-lhe as últimas conseqüências:
tendo lembrado numa Constituição de 1220 a frase final de lnocêncio III, o monarca,
em 1224, decretava francamente para a Lombaria a pena de morte contra os
hereges e, já que o Direito antigo assinalava o fogo em tais casos, o Imperador
os condenava a ser queimados vivos. Em 1230 o dominicano Guala, tendo subido à
cátedra episcopal de Bréscia (Itália), fez aplicação da lei imperial na sua
diocese. Por fim, o Papa Gregório IX, que tinha intercâmbio freqüente com
Guala, adotou o modo de ver deste bispo: transcreveu em 1230 ou 1231 a constituição imperial
de 1224 para o Registro das Cartas Pontifícias e em breve editou uma lei pela
qual mandava que os hereges reconhecidos pela Inquisição fossem abandonados ao
poder civil, para receber o devido castigo, castigo que, segundo a legislação
de Frederico II, seria a morte pelo fogo.
 
Os teólogos e canonistas da
época se empenharam por justificar a nova praxe; eis como fazia S. Tomás de
Aquino:
 
“É muito mais grave
corromper a fé, que é a vida da alma, do que falsificar a moeda que é um meio
de prover à vida temporal Se, pois, os falsificadores de moedas e outros
malfeitores são, a bom direito, condenados à morte pelos príncipes seculares,
com muito mais razão os hereges, desde que sejam comprovados tais, podem não
somente ser excomungados, mas também em toda justiça ser condenados à morte”
(Suma Teológica II/II 11,3c)
 
A argumentação do S. Doutor
procede do princípio (sem dúvida, autêntico em si) de que a vida da alma mais
vale do que a do corpo; se, pois, alguém pela heresia ameaça a vida espiritual
do próximo, comete maior mal do que quem assalta a vida corporal; o bem comum
então exige a remoção do grave perigo (veja-se também S. Teol. II/II 11,4c).
 
Contudo as execuções
capitais não foram tão numerosas quanto se poderia crer. Infelizmente faltam-nos
estatísticas completas sobre o assunto; consta, porém, que o tribunal de
Pamiers, de 1303 a
1324, pronunciou 75 sentenças condenatórias, das quais apenas cinco mandavam
entregar o réu ao poder civil (o que equivalia à morte); o lnquisidor Bernardo
de Gui em Tolosa, de 1308 a
1323, proferiu 930 sentenças, das quais 42 eram capitais; no primeiro caso, a
proporção é de 1/15; no segundo caso, de 1/22.
 
Não se poderia negar, porém,
que houve injustiças e abusos da autoridade por parte dos juízes inquisitoriais.
Tais males se devem a conduta de pessoas que, em virtude da fraqueza humana,
não foram sempre fiéis cumpridoras da sua missão. Os Inquisidores trabalhavam a
distâncias mais ou menos consideráveis de Roma, numa época em que, dada a
precariedade de correios e comunicações, não podiam ser assiduamente
controlados pela suprema autoridade da lgreja. Esta, porém, não deixava de os
censurar devidamente, quando recebia notícia de algum desmando verificado em
tal ou tal região.
 
Famoso, por exemplo, é o
caso de Roberto o Bugro, lnquisidor-Mor de França no século XIII O Papa
Gregório IX a princípio muito o felicitava por seu zelo. Roberto, porém, tendo
aderido outrora à heresia, mostrava-se excessivamente violento na repressão da
mesma. Informado dos desmandos praticados pelo lnquisidor, o Papa o destituiu
de suas funções e mandou encarcerar. – lnocêncio IV, o mesmo Pontífice que
permitiu a tortura nos processos da inquisição, e Alexandre IV, respectivamente
em 1246 e 1256, mandaram aos Padres Provinciais e Gerais dos Dominicanos e
Franciscanos, depusessem os lnquisidores de sua Ordem que se lhes tornassem
notórios por sua crueldade.
 
O Papa Bonifácio VIII
(1294-1303), famoso pela tenacidade e intransigência de suas atitudes, foi um
dos que mais reprimiram os excessos dos lnquisidores, mandando examinar, ou
simplesmente anulando, sentenças proferidas por estes.
 
O Concílio regional de
Narbona (França) em 1243 promulgou 29 artigos que visavam a impedir abusos do
poder. Entre outras normas, prescrevia aos lnquisidores só proferissem sentença
condenatória nos casos em que, com segurança, tivessem apurado alguma falta,
“pois mais vale deixar um culpado impune do que condenar um inocente” (cânon
23).
 
Dirigindo-se ao Imperador
Frederico II, pioneiro dos métodos inquisitoriais, o Papa Gregório IX aos 15 de
julho de 1233 lhe lembrava que “a arma manejada pelo imperador Não devia servir
para satisfazer aos seus rancores pessoais, com grande escândalo das
populações, com detrimento da verdade e da dignidade imperial” (ep. saec. XIII
538-550).
 
Avaliação
 
Procuremos agora formular um
juízo sobre a lnquisição medieval.
 
Não é necessário ao católico
justificar tudo que, em nome desta, foi feito. É preciso, porém, que se
entendam as intenções e a mentalidade que moveram a autoridade eclesiástica a
instituir a Inquisição. Estas intenções, dentro do quadro de pensamento da
Idade Média, eram legítimas, diríamos até: deviam parecer aos medievais
inspiradas por santo zelo. Podem-se reduzir a quatro os fatores que influiram
decisivamente no surto e no andamento da Inquisição:
 
1) Os medievais tinham profunda consciência do valor da alma e
dos bens espirituais. Tão grande era o amor à fé (esteio da vida espiritual)
que se considerava a deturpação da fé pela heresia como um dos maiores crimes
que o homem pudesse cometer (notem-se os textos de S. Tomás e do Imperador
Frederico II atrás citados); essa fé era tão viva e espontânea que dificilmente
se admitiria viesse alguém a negar com boas intenções um só dos artigos do
Credo.
 
2) As categorias de justiça na Idade Média eram um tanto
diferentes das nossas: havia muito mais espontaneidade (que as vezes equivalia
a rudez) na defesa dos direitos. Pode-se dizer que os medievais, no caso,
seguiam mais o rigor da lógica do que a ternura do sentimentos; o raciocínio
abstrato e rígido neles prevalecia por vezes sobre o senso psicológico (nos
tempos atuais verifica-se quase o contrário: muito se apela para a psicologia e
o sentimento, pouco se segue a lógica; os homens modernos não acreditam muito
em princípios perenes; tendem a tudo julgar segundo critérios relativos e
relativistas, critérios de moda e de preferência subjetiva).
 
3) A intervenção do poder secular exerceu profunda influência
no desenvolvimento da inquisição. As autoridades civis anteciparam-se na aplicação
da forma física e da pena de morte aos hereges; instigaram a autoridade
eclesiástica para que agisse energicamente; provocaram certos abusos motivados
pela cobiça de vantagens políticas ou materiais. De resto, o poder espiritual e
o temporal na Idade Média estavam, ao menos em tese, tão unidos entre si que
lhes parecia normal, recorressem um ao outro em tudo que dissesse respeito ao
bem comum. A partir dos inícios do séc. XIV a lnquisição foi sendo mais
explorada pelos monarcas, que dela se serviam para promover seus interesses
particulares, subtraindo-a às diretivas do poder eclesiástico, até mesmo
encaminhando-a contra este; é o que aparece claramente no processo inquisitório
dos Templários, movido por Filipe o Belo da França (1285-1314) à revelia do
Papa Clemente V; cf. capítulo 25.
 
4) Não se negará a fraqueza humana de Inquisidores e de
oficiais seus colaboradores. Não seria Iícito, porém, dizer que a suprema
autoridade da Igreja tenha pactuado com esses fatos de fraqueza; ao contrário,
tem-se o testemunho de numerosos protestos enviados pelos Papas e Concílios a
tais ou tais oficiais, contra tais leis e tais atitudes inquisitoriais. As
declarações oficiais da Igreja concernentes à Inquisição se enquadram bem
dentro das categorias da justiça medieval; a injustiça se verificou na execução
concreta das leis. Diz-se, de resto, que cada época da história apresenta ao
observador um enigma próprio na antiguidade remota, o que surpreende são os
desumanos procedimentos de guerra. No lmpério Romano, é a mentalidade dos
cidadãos, que não conheciam o mundo sem o seu lmpério (oikouméne – orbe
habitado – lmperium), nem concebiam o Império sem a escravatura. Na época
contemporânea, é o relativismo ou ceticismo público; é a utilização dos
requintes da técnica para “lavar o crânio”, desfazer a personalidade, fomentar
o ódio e a paixão. Não seria então possível que os medievais, com boa fé na
consciência, tenham recorrido a medidas repressivas do mal que o homem moderno,
com razão, julga demasiado violentas?
 
Quanto a Inquisição Romana,
instituída no séc. XVI, era herdeira das leis e da mentalidade da lnquisição
medieval. No tocante à Inquisição Espanhola, sabe-se que agiu mais por
influência dos monarcas da Espanha do que sob a responsabilidade da suprema
autoridade da Igreja.
 

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